10/12/2019 12:37

Fernanda Couzemenco¹

O litoral sul é o novo alvo da indústria petroleiro no Espírito Santo (ES). Os navio-plataformas, FPSO², já estão em alto-mar há mais de uma década. Capixaba, Espírito Santo, Cidade de Anchieta, P-58 e P-57 são as unidades construídas pela multinacional BW Offhsore – presente em 40 países de todos os continentes – e operadas pela Shell e Petrobras. 

Foto: Leonardo Sá

Sugando o “sangue da terra” – como pode-se chamar o petróleo, na perspectiva de muitos povos tradicionais e adeptos de filosofias de compreensão holística da vida – a grandes profundidades, de até 2.500 metros, os navios-plataforma instaladas na Bacia de Campos, na divisa do ES com o Rio de Janeiro (RS), já modificaram a dinâmica da pesca artesanal da região. 

O que mais está por vir quando o Porto Central e o Itaoca Offshore começarem a operar? O primeiro, um dos maiores empreendimentos do setor no país, um complexo industrial portuário multipropósito de águas profundas com 2.000 hectares de área. O segundo, “uma base de apoio às atividades de exploração e produção (E&P) de petróleo e gás, que tem o objetivo de eliminar os gargalos operacionais e suprir a deficiência de instalações especializadas na região”, segundo se autodefine a Itaoca Terminal Marítimo S.A. 

Foto: Leonardo Sá

A reportagem de Século Diário esteve em Itaipava/Itapemirim e em Marobá/Presidente Kennedy há um ano, em uma das expedições do projeto apoiado pelo edital Mais Vida Menos Petróleo, da Campanha Nem Um Poço a Mais³, que dá nome à essa série de reportagens, cuja última etapa de publicação se dá neste mês de dezembro, com relatos de pescadoras, pescadores e artesãs das duas localidades, mulheres e homens que obtém seu sustento a partir do mar e que veem o seu mar, dia após dia, se tornar mais distante de suas vidas, mais inóspito, sequestrado pela sangria do petróleo e da ganância estúpida do ser humano. 

Neste penúltimo capítulo da série, a seguir, a pescadora Lucila da Rocha Lopes nos conta o suplício das famílias de pescadores artesanais do simpático balneário de Itaipava, desde a chegada das plataformas e os rumores de portos na região, como o atual Itaoca Offshore, cuja Licença de Instalação já foi concedida pelo Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema). 

E na reportagem seguinte, a última da série, D. Dora e Rose, artesãs em Marobá, e o casal Renata e Carlos, da Associação de Pescadores de Presidente Kennedy, nos relatam as batalhas perdidas dos pescadores e pescadoras que não são dignamente ouvidos nas instâncias oficiais de escuta determinadas no licenciamento ambiental, simbolicamente concedidas pelo poder público e burocraticamente executadas pelos gestores do Porto Central. 

Em ambas as localidades, o medo de que o pior ainda está por vir. O velho conhecido progresso, sujo de óleo, fedido a gás, o crescimento desordenado, poluição, violência urbana, drogas, prostituição, miséria, desigualdade social crescente, morte – dos peixes, das algas, dos manguezais, dos modos de vida tradicionais, da alma de comunidades inteiras. 

Cada vez mais longe

“Hoje a pesca não é mais 100% como antigamente. Com o surgimento de muitas plataformas no mar, os pescadores têm que ir muito longe pescar. Ficam em outros portos, ficam distantes da família. Tem chefes de família que não veem seus filhos crescerem, ficam ausentes na educação, têm mais despesa pra pagar. Tá muito difícil, tá muito difícil”. 

O triste panorama da pesca atual nos é dado por Lucila da Rocha Lopes, pescadora em Itaipava, profunda conhecedora da realidade do setor na região, mulher que também sente em casa e em toda sua comunidade os efeitos do malfadado progresso baseado no sangue extraído do fundo da terra.

Foto: Leonardo Sá

“Se a pesca vai bem, o mercado vende bem, materiais de construção, tem serviço pra pedreiro, ajudante de pedreiro. Tudo rola em cima da pesca. Se a pesca vai bem, o nosso município vai bem. A prefeitura não consegue dar emprego a todo mundo e muitos jovens casam cedo, querem cuidar das suas famílias, e se não conseguem emprego, vão pra pesca”, descreve. 

Embarcações que antes passavam dez, doze dias no mar, hoje precisam ficar no mínimo 20 dias, muitas vezes mais, conta Lucila. Se vão pra Itajaí, em Santa Catarina, a viagem é ainda mais longa, em torno de seis meses. “Vão em casa duas vezes por ano. Esse ano tem pescador daqui indo pra Moçambique na África. De seis em seis meses vem em casa”, lamenta, lembrando o caso de um primo, jovem, cujo filho pequeno levou quatro dias pra ir ao seu colo, quando voltou da longa viagem em alto-mar. “E era agarrado com ele, imagina!”, ressalta. “Ele disse que não ia mais fazer isso, ia ficar por aqui”, reporta. 

Os barcos, conta, saem da praia com despesa de R$ 45 mil empenhada, sem contar os “vales” de adiantamento para as despesas do dia a dia das famílias, órfãs, em terra. 

Como medida de compensação, um porto está sendo construído para os pescadores locais, antiga reivindicação da frota, uma das maiores do Espírito Santo, formada por barcos de 15 a 18 metros de comprimento, em média, campeões capixabas na captura de atuns e outros peixes mais nobres, tendo atraído, pela fama, a gigante Atum do Brasil”.

Foto: Leonardo Sá

O porto, no entanto, começou com uma obra faraônica, claramente não direcionada para as embarcações a quem se dizia destinado, e sim, para a pesca industrial da Atum do Brasil e similares.  

Às vésperas de inaugurar a obra, pelo menos uma concessão, na esteira de um olhar minimamente empático aos verdadeiros “donos” da costa: a promessa de abastecimento dessas embarcações com preço 25% mais barato. “A prefeitura disse que vai mudar a estratégia e quem vai decidir sobre o porto é a população e não as empresas grandes”, informa Lucila. 

O município de Itapemirim, diga-se de passagem, ao qual Itaipava pertence, é um dos mais presentes em escândalos de corrupção no mercado político capixaba, comprovando a lógica perversa do capital e do lendário desenvolvimento: quanto mais dinheiro, mais corrupção, mais desigualdade, mais esgarçamento do tecido social. 

O mito do desenvolvimento

“O desenvolvimento não existe, a não ser como mito, uma crença, mantidos, divulgados, reforçados e operacionalizados por uma narrativa que afirma e reafirma a possibilidade de uma vida melhor, mas realizado por ações que, muitas vezes, submetem as populações locais a condições de vida mais precárias do que aquelas que elas tinham antes do ‘desenvolvimento”, deslinda a professora Ana Claudia Meira, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), em Alegre, em artigo publicado na revista Interações, de Campo Grande/MS. 

O artigo é um dos frutos de sua pesquisa de doutorado, em que visitou a região nos anos de 2015 e 2016, ouvindo os profissionais da pesca artesanal em sua luta por serem ouvidos de verdade e terem respeitada sua tradição pesqueira. Tradição essa que, há tempos imemoráveis, sustenta econômica e culturalmente o território hoje cobiçado pelos gigantescos contêineres, diques, píeres, estaleiros e armazéns que se apressam em ocupar e transformar o chão, o ar, a água e a identidade de extensões muito superiores aos polígonos onde se encerram as monstruosas estruturas, pois o as áreas de exclusão de portos e plataformas se escarrancham por milhas e milhas além das plantas industriais propriamente ditas. 

Esse desenvolvimento propalado no sul capixaba, aduz a acadêmica, “é uma das razões que explicam o fato de que as comunidades locais não têm acesso às ‘benesses’ do desenvolvimento”, propagandeadas nos discursos dos governos e dos empresários, e que a tantas milhares de pessoas atrai para os lugares marcados para receberem as máquinas e grandes obras do progresso.

Quem não offshore não mama

Foto: Melissa_Peron

Na peça Quem não offshore não mama, apresentada em Itaipava também com apoio do edital Mais Vida Menos Petróleo, os atores representam, no palco, a velha e repetida história que amaldiçoa os territórios do petróleo. No teatro, o pescador Pedro inflama todo o elenco a declamar uma prece de resistência ao final do espetáculo:

Em nome das famílias que vivem da pesca
Pela natureza tão generosa que sempre tudo nos dá
Contra toda violência
Em defesa da nossa cultura
Contra toda ilusão de progresso
Pela segurança de nossas crianças
Por uma água limpa
Pelo direito de sonhar com dias melhores
Nem um poço a mais!
Vamos ficar de olhos abertos e ouvidos bem atentos
Defenderemos nossa cultura até o fim
Serei uma muralha de músculos contra as hordas assassinas
Os senhores da alma tentarão comprar a minha
Mas eles podem apontar cem mil canhões contra o meu peito
Nada feito, eu defenderei o amor até o fim!
Combaterei com os meus versos até os confins do universo sem fim
E mesmo com as perfurações, os portos, o pré-sal e toda forma de contaminação, 
Eu defenderei o amor até o fim!

Na vida real, as próximas cenas ainda são um mistério, pois esse roteiro ainda não se sabe se é conservador, consagrando a velha conhecida falácia do progresso desenvolvimentista, ou se é inovador, em que a vida vale mais que o petróleo e que o bem-estar social das comunidades costeiras e do Estado como um todo precisa traduzir em ações efetivas o clamor por Nem Um Poço a Mais. 

[1] Reportagem publicada originalmente no site Século Diário.

[2] Sigla em inglês de Floating Production Storage and Offloading (FPSO), unidade flutuante de produção, armazenamento e transferência é um tipo de navio utilizado pela indústria petrolífera para a exploração, armazenamento petróleo e/ou gás natural e escoamento da produção por navios cisterna. 

[3] A FASE é parte da Campanha Antipetroleira Nem Um Poço a Mais.