Élida Galvão
19/03/2018 15:09
Élida Galvão¹
“O Protocolo vem nos auxiliar, para não termos o mesmo problema de Barcarena. Lá começaram a fazer as bacias sem consultar a população. Se tivessem ouvido os moradores, talvez não tivesse acontecido isso. O Protocolo vem para defender nosso território”. Assustada com o transbordamento de rejeitos tóxicos das bacias da mineradora Hydro Alunorte, no município de Barcarena, a presidenta da Associação Quilombola do Baixo Caeté África e Laranjituba (AQUIBAC), Leocádia Oliveira, alerta para a importância da criação do Protocolo de Consulta das duas comunidades que representa, Laranjituba e África, em Abaetetuba (PA).
A preocupação não é em vão, mais uma vez a população de Barcarena vem passando pelos transtornos da contaminação ambiental no município. Há dois anos o susto veio com o naufrágio de um navio contendo cerca de 5 mil bois vivos e 700 litros de combustível, contaminando o rio, o solo e os lençóis freáticos. Recentemente, outra situação tem tirado o sono dos moradores: a gravidade da contaminação devido ao vazamento de rejeitos da barragem, confirmada pelo Instituto Evandro Chagas.
O que Leocádia coloca está relacionado com a preocupação em defesa do território em que vive. Atualmente existe uma projeção do governo do estado para a construção da Ferrovia Paraense (FEPASA), ligando o Sul do Pará ao Norte do estado para o escoamento da produção mineral. “Esse tipo de empreendimento é que a gente quer evitar que seja feito aqui: construção de ferrovias, instalação de grandes portos, mineroduto. A ideia desses empreendimentos é atravessar as comunidades quilombolas. E o protocolo é um instrumento de resistência, de não permitir que isso aconteça. É um documento importante, de defesa do território, da vida comunitária que vocês têm aqui”, disse Guilherme Carvalho, coordenador da FASE na Amazônia, que tem acompanhado as famílias de Laranjituba e África nesse processo.
Em defesa do território
Logo de manhã cedo de um sábado, a rádio comunitária já anunciava a assembleia que ocorreria no período da tarde. No ar, os jovens Vinicius e Eduardo chamavam todos os moradores para a reunião realizada no dia 24 de fevereiro. O encontro marcou a aprovação do Protocolo de Consulta de Laranjituba e África, depois de um processo que passou por diversos outros momentos de formação sobre resgate histórico e oficinas de capacitação para a elaboração conjunta do documento.
Compartilhando a experiência de sua comunidade, Abacatal, localizada na região metropolitana de Belém, o jovem quilombola Eduardo Cardoso falou sobre a importância do Protocolo de Consulta diante da ameaça à soberania de seu território com a construção da rodovia Liberdade, um projeto do governo do Pará que tem o objetivo de criar uma rota alternativa para ligar a capital do estado a municípios vizinhos. “Nosso Protocolo já está sendo usado porque sofremos muitas ameaças. Isso pode destruir a nossa comunidade. Já estamos sendo consultados pelo Plano Diretor do município de Ananindeua e o Protocolo nos defende de futuros projetos que possam atingir a comunidade ou ao redor dela. Se não fosse o Protocolo, estas consultas não estariam acontecendo”, avalia Eduardo.
Para o educador da FASE João Gomes, este é um passo importante na história de luta de Laranjituba e África. Exemplificando a conquista de outras comunidades quilombolas que construíram seu Protocolo de Consulta ou que estão neste processo, como Pirocaba, Abacatal, Jambuaçu e São Lourenço, além do Protocolo dos indígenas Munduruku, João explica que a consulta deve ser prévia, livre e informada, como determina o tratado internacional do qual o Brasil é signatário. “As grandes obras atingem povos indígenas e comunidades tradicionais. A partir da Convenção 169 da OIT[Organização Internacional do Trabalho], estas populações passaram a ter reconhecida a sua autodeterminação. Portanto, são vocês que vão dizer o que é melhor para vocês e, com isso, têm que ser consultados. A consulta é mais do que ser ouvido, é pedir permissão a vocês”, explicou.
Consulta prévia
A aprovação do Protocolo de Consulta de Laranjituba e África ocorre no momento em que uma ação conjunta entre o Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Pará, a Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado pede a revogação do Decreto nº 1969, de 24 de janeiro de 2018, que trata da criação de um grupo de trabalho para regulamentar a realização de consultas prévias, livres e informadas para comunidades tradicionais. Ocorre que a Consulta Prévia é um direito com força de Lei, em vigor no Brasil desde 2004, com a assinatura da Convenção 169. Dessa forma, nenhuma medida, nem mesmo legislativa, que venha afetar povos e comunidades tradicionais pode ser tomada sem Consulta Prévia. Portanto, o decreto em si já se traduz em violação de direito, já não considera a participação de indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais.
Morador da comunidade África, Evaristo Moraes fala sobre a forma comunitária em que vive, um modo de vida que considera o respeito à coletividade. “Aqui a nossa vivência [no território] é muito diferente. Aqui não temos muros. Cada um passa ao lado da casa do outro, mas cada um respeita o espaço do outro. Não é só o capitalismo que impera. Aqui a gente vive em sistema de troca, um vizinho empresta para o outro o que necessita”.
Em meio à assembleia de aprovação da Consulta Prévia, Seu Albertino Moraes destaca a necessidade de utilizar os instrumentos de comunicação para fortalecer a luta em defesa do território. Para ele, é preciso intensificar a divulgação do Protocolo para que as comunidades passem a ser consultadas, fortalecendo assim os seus direitos. “Esse protocolo de consulta não é mais do que um documento para fortalecer os nossos direitos. Não somos nós que temos que consultar esses grandes empresários. Eles que têm que se consultar conosco sobre o que podem e o que não podem implantar dentro de nossos territórios. Para isso, nós estamos aqui criando esse protocolo. Para que os nossos direitos sejam ouvidos e vistos nos jornais, na imprensa. Temos o benefício dessa rádio [comunitária] que vem divulgar nas comunidades sobre o que tá acontecendo”, destacou.
Representante da Coordenação das associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), Aurélio Borges esteve presente na reunião que aprovou o Protocolo de Consulta após uma leitura coletiva do documento. “Todos os dias temos violações de direitos. As empresas, os empreendimentos estão nos nossos territórios com estudos prontos, com mapa pronto. E agora mais do que nunca temos que nos unir. Queremos ser consultados. Não queremos negociar com o governo, queremos tomar decisões sobre o nosso território”, argumenta.
Apoio do Fundo Dema
Em apoio à defesa do território das comunidades Laranjituba e África, o Fundo Dema contribuiu no desenvolvimento da iniciativa ‘Quilombolas do Baixo Caeté Fortalecendo a Defesa do território, a Agroecologia com o Manejo Sustentável da Floresta’, pela AQUIBAC, voltado à promoção de práticas produtivas de base agroecológica.
Com isso, por meio de três mutirões, as famílias das duas comunidades realizaram o manejo de nove hectares, o que corresponde a 60% da floresta de área coletiva. E com o uso de GPS fizeram a demarcação dos limites dos dois quilombos, de seus igarapés, áreas de preservação permanente e de trabalho coletivo. De acordo com as famílias, a iniciativa abriu novas perspectivas na discussão do Plano de Uso do território como instrumento de defesa dos bens comuns (ver vídeo).
[1] Élida Galvão é jornalista do Fundo Dema. Matéria publicada originalmente aqui.
*Jornalista do Fundo Dema