21/10/2016 11:49
Gilka Resende e Rosilene Miliotti¹
Diante dos níveis vigentes de exploração da natureza e do contexto político e econômico no país, em que as opressões se acirram com a retirada de direitos, a FASE, a Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA), o Núcleo Tramas, o Movimento Águas da Gandarela, a Sempreviva Organização Feminista (SOF) e o Grupo de Pesquisa Identidades Coletivas, Conflitos Territoriais e Educação Emancipatória (IFPR) reuniram no Rio de Janeiro grupos que promovem resistências à lógica de mercado nos campos, nas cidades e nas florestas. Mais de 100 pessoas, de 12 estados brasileiros e de três países, participaram do Seminário Nacional Bens Comuns: Diálogos de Práticas e Saberes Contra-Hegenônicos².
Nos dias 4 e 5 de outubro, trocaram experiências³ e identificaram convergências entre lutas contra a privatização de territórios e de serviços públicos. Julianna Malerba, do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE, destacou que os modos de vida na defesa de bens comuns materiais, como a terra e a água, assim como imateriais, como os conhecimentos, possuem papel central no atual contexto. “Acreditamos ser importante esta chave de leitura para estas práticas e para estes sujeitos, em um momento em que estes vivem sob ameaças. Os bens comuns não são simplesmente coisas. A ‘comunalidade’ dos bens é construída historicamente. Maneiras de pensar e agir por fora de uma forma individualista e mercantilista são fundamentais de serem traduzidas e nomeadas como comuns”, explicou.
No seminário, foi lançado o livro “Mercado ou Bens Comuns? – O papel dos povos indígenas, comunidades tradicionais e setores do campesinato diante da crise ambiental”, de Jean Pierre Leroy, também da FASE. Na publicação, o autor demonstra que, por meio de suas estratégias de resistência, grupos têm demonstrado que vale e é possível lutar por direitos, ressaltando que “seus conhecimentos são preciosos para o futuro”. “Juntar agendas e processos políticos é estratégico diante de tanta desigualdade, do racismo e do patriarcado, que mantêm invisíveis diversos sujeitos e suas necessidades, suas maneiras de viver, entender o mundo e de fazer uso dos recursos naturais”, avaliou Julianna.
Lutas em defesa dos territórios
Durante os debates, ficou evidente que os bens comuns ultrapassam os bens materiais. A mobilização para a construção de uma rádio livre ou comunitária, por exemplo, é um bem comum, assim como espectro eletromagnético ocupado por essa e outras emissoras. Ou, ainda, as tecnologias para cultivar alimentos sem o uso de agrotóxicos, as formas armazenar água para a convivência com o semiárido, as maneiras de organizar ocupações de prédios e terrenos vazios em metrópoles, dentre outras práticas, se mostram também como bens comuns.
Rosimere Nery Peixoto, coordenadora do programa da FASE em Pernambuco, acompanha de perto as violações de direitos cometidas pelo Complexo Industrial Portuário (Suape), que fica no município de Cabo de Santo Agostinho, mas impacta diversos outros territórios. Na região, trabalhadores e trabalhadoras da comunidade pesqueira e de agricultores familiares foram expulsos de suas terras. “A empresa foi multada, mas não há como mensurar o que ela tem feito. As pessoas estão doentes, com depressão. Existem famílias numerosas que moram em casas pequenas, onde não têm acesso à terra para plantar”, exemplifica. Para ela, falar de bem comum é falar de direitos básicos. “Um bem só é comum se é para todos, e não apenas para parte de uma população ou para quem pode pagar”, ressalta.
Rudrigo Silva, do Movimento Ocupe Estelita, também de Pernambuco, falou da importância da mobilização e da conscientização da população. “Consolidamos novas estratégias de mobilização no Recife”, relatou. Um dos casos mais emblemáticos foi o do dia da reintegração de posse do Cais José Estelita em 2014, em que houve repressão da polícia e da própria Queiroz Galvão. “A construtora colocou os operários para reconstruir um muro [isolando o portão de entrada do terreno]. Dialogamos com os pedreiros, dizendo que acreditávamos que, ao invés de construir um prédio ali, poderíamos construir escolas, hospitais e moradias. Um dos operários veio até mim e disse que estávamos certos. Contou que, no dia anterior, seu filho passou mal e percorreu três hospitais até que fosse atendido”, lembrou Rudrigo, que participou da ocupação contra a especulação imobiliária.
“Temos que mostrar que as cidades são um campo de possibilidades não realizadas, que são um instrumento para conquistar as pessoas e dizer que sabemos que existe direito à moradia, à terra, à água, e que é possível garantir esses direitos. Muitas vezes essa luta exige enfrentamento porque o acesso a esses direitos nunca se dá de forma fácil”, afirma Rudrigo.
Para Maria Teresa Corujo, do Movimento Águas do Gandarela, de Minas Gerais, o seminário mostrou que existem experiências, não só no Brasil, de lutas que estão dando certo. “Chamo esses coletivos, movimentos, grupos de ‘sementinhas do mundo novo’. Uma sementinha ali, outra aqui, sem um formato único. Podemos nos conhecer, trocar, mas não temos que nos formatar em caixinhas”, opina. Maria Teresa, mais conhecida como Teca, diz que é preciso trazer outros olhares. “Nós, do Gandarela, consideramos essas sementinhas ferramentas com força social, porque a população começa a perceber que tem o direito de ser livre, direito de estar na contramão do que está consolidado”, concluiu Teca, que integra o movimento que defende o território frente às ameaças da mineração.
Histórico das lutas por bens comuns
Nas diversas lutas pelos bens comuns, algo que chama atenção é que, muitas vezes, as resistências enfrentam na prática a imposição da “propriedade individual”. Para explicar a questão, o professor Carlos Marés, da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relacionou o assunto ao colonialismo, em especial na América. Ele explicou que o Direito foi responsável por regular “diversas maldades” ao longo da história, sendo que a primeira delas foi a de determinar a “propriedade da terra”. “Não estamos falando da propriedade das pequenas coisas de cada um. Não se trata disso. Estamos falando que a terra é, naturalmente, um bem comum, é de todos. Mas ela passa a ser vista como propriedade individual após uma força, um poder. Foi com a chegada dos europeus. Na América, a propriedade individual da terra está ligada a duas outras crueldades: à escravidão, já que a terra não conseguiria produzir sozinha o que os colonizadores queriam, e à desconstrução do que na Europa era chamado de trabalho livre, ainda que não fosse tão livre assim”, expôs.
Após o “sequestro de populações indígenas e africanas”, o professor explica que lutas isoladas ocorreram ao longo de 400 anos a fim de se impedir a entrega total do patrimônio comum dos povos. Segundo Carlos, o século XX inaugura um novo ciclo de lutas. “Os que lutavam, cada um a sua maneira, se unem e encontram formas de organização em que começam a reverter a derrota. Isso resultou em normatividades de proteção, sendo a mais conhecida a Convenção 169, [da Organização Internacional do Trabalho]”, destaca. O instrumento determina a necessidade de consulta prévia e de participação dos povos tradicionais nas decisões, diante de medidas que possam ameaçar seus modos de vida e territórios.
Porém, Carlos ressalta que atualmente o sistema impõe novas fronteiras: “O capitalismo e o colonialismo são muito mais impiedosos. Quando existe essa conquista pelos territórios comuns, algo fora da ideia de propriedade individual, surge uma nova ordem através de falsas formas de proteção da natureza. Essas dizem que a terra pode até ser comum, mas não pode ser livre o que está em cima dela”. Ou seja, as árvores, águas, recursos minerais, dentre outros bens comuns em territórios protegidos, como terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação ambiental, voltam a ser alvo do mercado em pleno século XXI.
A pesquisadora alemã Jutta Kill, da World Rainforest Movement (WRM), também alerta sobre uma nova ameaça aos bens comuns. “Esta se apresenta com distintos nomes. Por vezes falam em nova economia da natureza, em economia verde, em mercantilização da natureza, são várias palavras sobre um mesmo fenômeno, mas nenhuma delas descreve de fato o que está acontecendo. Para mim, um dos perigos é que, em um primeiro olhar, elas podem parecer coisas boas para valorizar a natureza, mas será que valor e valorizar são duas coisas distintas? Temos que tomar cuidado para não mudarmos o discurso. Estão dizendo que não é mais problema destruir a natureza, porque estão compensando em outro lugar. Mas o resultado é mais destruição”, alertou.
Os Pagamentos por Serviços Ambientais (PSA) estão entre as estratégias para promover as chamadas “compensações” à destruição da natureza criticadas por Jutta. O tema mereceu atenção em livro, lançado recentemente pela FASE e pelo Grupo Carta de Belém, que reúne um conjunto de visões críticas às falsas soluções corporativas para o aquecimento global. A publicação demonstra que lutar contra a economia verde e os mecanismos de mercantilização da natureza, como os mercados de carbono, é também lutar em defesa dos bens comuns.
[1] Jornalistas da FASE. Essa cobertura contou ainda com a colaboração de Kátia Visentainer e de Nayana Bonamichi, que ajudaram a registrar os debates do seminário.
[2] A atividade contou com o apoio das Fundações Boll Brasil e Ford.
[3] Confira mais fotos do evento aqui. Acesse ainda a versão em inglês.