26/07/2021 21:29
Rosilene Miliotti¹
Notícias sobre a explosão nas vendas de arroz fragmentado e as grandes filas para receber doação de ossos com restos de carne circularam em grandes jornais e chocaram parte da sociedade. Mas é preciso destacar que o fato noticiado não aconteceu em qualquer lugar: foi em Cuiabá, o centro do agronegócio, a capital do estado que tem um dos maiores rebanhos bovinos do Brasil.
A pandemia da Covid-19 aprofundou a situação precária vivida por milhões de brasileiros. De acordo com a última pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), em 2020, mais de 19 milhões de brasileiros passando fome. Em 2018, eram 10,3 milhões.
Para Franciléia Paula, agrônoma e educadora da FASE no Mato Grosso, o fato de essa população precisar de doação de ossos para sobreviver é uma mensagem direta para sociedade. “Que desenvolvimento é esse que o agronegócio se orgulha? As pessoas que estão nas filas não têm escolha. Ou elas ganham osso ou ficam sem comer. Nesse caso, isso não tem a ver com os hábitos alimentares dessa população, tem a ver com o desemprego, a alta do preço dos alimentos e o crescimento da pobreza, onde o direito à alimentação não é respeitado”, destaca.
“O caminho da Covid segue os caminhos da fome”, argumenta Maria Emília Pacheco, assessora da FASE, ao analisar os recentes acontecimentos pela ótica da segurança e soberania alimentar. “O Direito Humano à Alimentação significa ficar livre da fome e, ao mesmo tempo, ter acesso à alimentação adequada e saudável com respeito às culturas alimentares”.
Sobre o crescente aumento da venda de arroz fragmentado, a instrução normativa nº 6, de 2009, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, aprovou o Regulamento Técnico do Arroz, e incluiu em seu artigo 2º inciso XV o fragmento de arroz como produto constituído de, no mínimo, 90% de grãos quebrados e quirera, próprio para o consumo humano. Mas seu consumo não é uma escolha que faz parte dos hábitos alimentares, é uma imposição da pobreza por ser mais barato, como também os produtos alimentícios ultraprocessados que adoecem a população. Estudos da Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostram que o arroz e o feijão tiveram aumento acima de 60% entre março de 2020 e 2021.
“É um equívoco enaltecer ‘o agro como riqueza do Brasil’, como se escuta nas propagandas. Em meio ao boom das exportações de mercadorias como a soja, não há ações efetivas voltadas para ampliar urgentemente a oferta de alimentos no país para baixar os preços. Também não há estoques públicos de alimentos que possam ser mobilizados para conter a alta dos preços dos alimentos. Da mesma forma, enquanto crescem os lucros das grandes indústrias alimentícias, supermercados paralisam ou reduzem as compras públicas dos alimentos saudáveis da agricultura familiar e camponesa para atender à alimentação escolar e redes socioassistenciais”, revela Maria Emília.
Francileia destaca que o que tem acontecido no Mato Grosso, se repete pelo país e com outros alimentos que estão perdendo espaços de produção para o plantio de soja. “Fragmentos de arroz, por exemplo, não é alimento, sobretudo nesse contexto da pandemia, onde o governo brasileiro, ao não olhar para fome, promove o nutricídio da população”. Para Maria Emília, o flagelo da fome requer um engajamento cidadão e empatia social na defesa da soberania alimentar e mudança do sistema alimentar para enfrentar a fome e a má nutrição, assegurando os direitos de quem produz a comida de verdade no campo e na cidade, segundo os padrões do Guia Alimentar da População Brasileira.
No Norte: cultura alimentar x necessidade alimentar
No Pará, Rui Massato Harayama, antropólogo e professor do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), explica que a discussão da segurança alimentar é tema central desde o início da pandemia. “Mesmo com as articulações, inclusive do PROCON local, percebemos aumento de preço dos produtos industrializados e semi industrializados, principalmente de perecíveis de fora de Santarém”.
Questionado sobre o consumo de osso como alimento, o professor explica que esse produto já era vendido nos atacadões locais, mas com um valor simbólico, hoje é um artigo que entra em promoção. “Geralmente, as pessoas compram ossos para fazer a base de sopas e caldos, faz parte da cultura alimentar local. O que nos surpreende é estar entrando em promoção. Com a volta da insegurança alimentar, há falta de diversidade de alimentos. Por exemplo, a volta da centralidade da farinha com as pessoas deixando de comer proteína. O peixe, que é a base da alimentação do paraense, continua mais caro ao compararmos com outros produtos industrializados como o frango”.
O professor destaca, que, assim como em todo o país, o arroz e o feijão, também aumentaram muito. Ovos, legumes e verduras também subiram de preço, e as redes de solidariedades locais já não estão dando conta de ajudar a quem precisa. “Aqui, é preciso levar em conta o custo Amazônico. A população tem reclamado do aumento de itens como da querela, ração de milho triturado para criação de galinhas, mas esses refúgios como arroz ou feijão quebrados eu não tenho visto por aqui, ainda”.
[1] Jornalista da FASE.