18/10/2021 11:07

Fernanda Couzemenco¹

A sociedade civil capixaba é uma das mais influentes no debate nacional e mundial sobre os impactos socioeconômicos e ambientais da indústria baseada em monocultivos de árvores. A percepção é do coordenador do programa da FASE no Espírito Santo, Marcelo Calazans.

Marcelo Calazans. Foto: Arquivo Pessoal

Em entrevista ao Século Diário, ele situa o Espírito Santo no contexto latino-americano e mundial das lutas contra os desertos verdes, tendo como pano de fundo a participação de dois quilombolas do norte capixaba no debate virtual, realizado no dia 21 de outubro, em função do Dia Internacional de Ação sobre Biomassa em Grande Escala.

Flávia Souza e João Guimarães, lideranças nas comunidades do Angelim 2 e 1, respectivamente, em Conceição da Barra, norte do Estado, falarão no mesmo dia que lideranças do Chile e do Paraguai, relatando como os desertos verdes impactam os territórios e os povos em seus países.
Organizado por ONGs como a Environment Paper Network – que realizam ações no Hemisfério Norte contra empresas papeleiras e suas consumidoras, como Protcor and Gamble e Kimberly Klark – e a Global Forest Coalition – rede global que atua nos EUA e Alemanha e também na África e Ásia, monitorando plantações de eucalipto para biomassa –, o evento terá interpretação simultânea em espanhol, português e inglês. Para se inscrever, clique aqui.
Confira a entrevista com Marcelo Calazans:
Como o Estado se insere nesse debate mundial sobre os impactos sociais e ambientais da economia dos monocultivos de eucalipto? Quais são as principais entidades que fazem esse debate e como o ES se insere nele?
O Espírito Santo pode ser pequeno, imprensado entre Bahia, Rio de Janeiro e Minas, três estados que abrigaram cortes, que estiveram no centro da economia colonial e pós colonial, mas a sociedade civil capixaba é das mais influentes no que tange ao debate nacional e mundial sobre os impactos das monoculturas de eucalipto e fábricas de celulose. Tem uma histórica resistência dos povos tradicionais indígenas, quilombolas, da pesca artesanal, como também de importantes movimentos sociais do campo, como MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], MPA [Movimento dos Pequenos Agricultores], Fetaes [Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Estado], sindicatos, mais dezenas de organizações sociais e eclesiásticas, ambientalistas, defensores de direitos humanos, grupos de mulheres, pesquisadoras e acadêmicos, jornalistas, artistas, agroecologistas, estudantes etc. Essa longa resistência, que deu origem à Rede alerta contra Deserto Verde, na primeira década do século, já desconstruiu bastante da imagem “verde” deste tipo de plantio e latifúndio, que gasta milhões em publicidade (e pesquisa) e lobbie, para se afirmar como “floresta”.
E, no entanto, qualquer capixaba minimamente informado, quer dizer, que não esteja na realidade paralela que a empresa [Suzano, ex-Fibria e ex-Aracruz Celulose] cria, com apoio do Estado e alguns municípios, e mesmo de ONGs e consultores de mercado; enfim qualquer capixaba sabe muito bem diferenciar uma floresta de uma monocultura de eucalipto. Sabe da tragédia que se deu no final dos anos 60 e ao longo de todo 70 e 80, que foi a apropriação de territórios indígenas e quilombolas. Sabe também da grave crise hídrica que o eucalipto gera no norte do Estado, destruindo nascentes, aterrando córregos, justo onde habitam quilombolas, camponeses, pescadoras e sem-terras. Também é bem conhecida a crise hídrica ao redor da planta industrial, em Barra do Riacho por exemplo. A geração um pouco mais velha, que nasceu nos anos 50, ainda viu de pé a mata atlântica. E esse é um grande trunfo para a sociedade civil capixaba, pois a memória ainda está aí, viva, transitando nas reuniões presenciais, nas redes capilares de WhatsApps, nos blogs, páginas da web, em artigos, filmes, em teses e dissertações acadêmicas, em toda parte.
O mega passivo da velha Aracruz Celulose, por seus crimes contra a natureza e contra os povos, segue ativo com a Fibria, agora com a Suzano. A Rede Alerta contra o Deserto Verde transbordou do Espírito Santo e se articulou com outras lutas de resistência contra monocultivos, na Bahia, no norte de MG, no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, no Maranhão…o fortalecimento e articulação de lutas locais nos diferentes estados e regiões também se articulou com redes internacionais, como Recoma, uma rede latino-americana contra monocultivos de árvores, WRM, Movimento Mundial de Florestas. O Espírito Santo é uma referência pela tragédia do deserto verde, mas sua sociedade civil é uma referência de resistência.

Terras desmatadas para dar lugar a uma plantação de eucaliptos. (Foto: Flávia Bernardes/FASE)

Considerando o mercado mundial e, principalmente, latino-americano, baseado em monoculturas de eucaliptos, a produção de celulose é apenas um uso potencial do deserto verde implantado no norte e noroeste do Estado? Pelo menos em âmbito nacional é o que o Ibá, de Paulo Hartung, já defende.

Sim, importante entender as estratégias empresariais do setor, diante dos novos mercados e mercadorias globais que vêm sendo criadas. Claro, no Espírito Santo, a monocultura de eucalipto foi pensada para produção de celulose, com o norueguês Lorentzen e o apoio que sempre teve, de todos os governos desde os militares. Já nas Gerais, como se chama o norte de Minas, a monocultura foi planejada para abastecer os fornos de ferro gusa da siderurgia da região. Entretanto, essas mesmas monoculturas podem ser ofertadas ao mercado global, seja para o de carbono, seja para programas de “reflorestamentos”, “manejo florestal”, “recuperação de áreas degradadas”….todo esse jargão da economia “verde” e suas falsas soluções para a crise climática e o colapso ambiental do planeta. Então a monocultura é um ativo em abstrato, que por enquanto vai pra celulose, mas dependendo da variação dos preços internacionais das commodities, pode se transformar em celulose, carvão, ferro-gusa, ou créditos de carbono, energia, biomassa, o que for.

O Ibá, onde está Paulo Hartung, é um ótimo exemplo. Um instituto que se ancora nas próprias empresas, na articulação com governantes e investidores, atualizando sempre a velha mágica discursiva, as figuras de linguagem, para transformar plantios em larga escala, de uma só cultura, de rápido crescimento, curto ciclo e de estabilização química em uma “floresta”! Hoje Paulo Hartung está no Iba, amanhã pode voltar ao governo estadual, ou ao Senado, sei lá, mas sempre manterá essa pauta. Mas certamente não é apenas PH. São raros os políticos capixabas, dos diferentes espectros ideológicos, que não operam na lógica dos grandes projetos, fazendo do ES uma plataforma de extração/produção de commodities. Daí que seguem em expansão esses monocultivos, uma tragédia ambiental capixaba, como refere Rogério Medeiros, um deserto verde, como se referia Augusto Ruschi e como falava D. Aldo Gerna da Diocese de São Mateus, que afirmava não querer se transformar em pastor de bois e eucalipto.

No Paraguai, há uma espécie de Fundo Arbóreo, que beneficia empresas de monocultivos, o que motivou o evento a destacar o repúdio ao uso do termo “floresta (bosque)” para denominar os seus monocultivos de árvores. Isso se aplica também no Espírito Santo, tanto a crítica contra chamar de “florestas plantadas” os desertos verdes de eucalipto, quanto os incentivos fiscais historicamente concedidos para a silvicultura.

Não conheço o Fundo Arbóreo do Paraguai. Mas em toda América Latina e no Brasil, em particular, são vários os fundos, com diferentes nomes “fundo verde”, fundo do clima”, planos “florestais”, programas de reflorestamentos, fundos de compensação da siderurgia…todos se apresentam sob falso véu de “florestas”. Soa bem, óbvio, que haja fundos em defesa das florestas e do meio ambiente, em um período de colapso do clima. Jogam cientificamente com a desinformação. E cultivam desertos, como se fossem florestas. As empresas de eucalipto sempre estiveram sob a guarda, a proteção, e mesmo investimentos do Estado. Os Planos Nacionais de Papel e Celulose da época da ditadura, a cessão de terras devolutas da União e do Estado para as empresas, muitas delas terras quilombolas e outras que poderiam ser destinadas para a reforma agrária, os incentivos fiscais para exportação, como a velha Lei Kandir. Não faltam exemplos de que, embora defendam a economia de mercado, seguem sugando recursos do Estado e bens comuns da sociedade civil.

No que o evento pode fortalecer a luta capixaba contra o deserto verde?
O 21 de outubro, dia internacional contra biomassa, organizado por Global Forest, Environmental Paper e organizações de vários países e continentes, vai dar visibilidade a diferentes casos de conflitos sociais e ambientais no Chile, no Paraguai, no Brasil, e de outros continentes, relacionados à biomassa e às falsas soluções para a crise do clima. Embora os plantios de eucalipto no Espírito Santo estejam voltados para celulose, a monocultura é a mesma, com seus trágicos impactos, e nisso os povos tradicionais capixabas são experts inigualáveis, com seus saberes e conhecimentos, que aprenderam desde suas próprias experiências de vida sempre em resistência.

[1] Entrevista publicada originalmente no site Século Diário