20/08/2021 22:50
A Campanha Nacional em Defesa do Cerrado – uma articulação de 50 movimentos e organizações sociais – peticionou ao Tribunal Permanente dos Povos (TPP) para a realização de uma Sessão Especial para julgar o crime de ecocídio em curso contra o Cerrado e a ameaça de genocídio cultural dos povos desse bioma. A acusação, a ser apresentada durante o lançamento online do Tribunal no próximo dia 10 de setembro, aponta como responsáveis pelos crimes Estados e entes nacionais, Estados estrangeiros, organizações internacionais e agentes privados, como empresas transnacionais e fundos de investimento.
“Entendemos que se nada for feito para frear o que está ocorrendo no Cerrado, não se tratará apenas de históricos danos graves e vasta destruição. Estamos diante da ameaça de aprofundamento irreversível do ecocídio em curso, com a perda (extinção) do Cerrado nos próximos anos e junto com ele a base material da reprodução social dos povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais do Cerrado como povos culturalmente diferenciados, ou seja, seu genocídio cultural”, diz trecho da acusação que será apresentada pela Campanha em setembro.
O TPP do Cerrado apresentará 15 casos, distribuídos entre Bahia, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Piauí e Tocantins. Os casos apontam a sistematicidade geográfica e no tempo de certas violações que permitem falar em ecocídio para o conjunto do Cerrado e também em ameaça de genocídio cultural dos povos. Os casos foram selecionados a partir de um amplo processo de escuta e análise envolvendo lideranças comunitárias e organizações de assessoria membros da Campanha. Lideranças dos territórios impactados falarão de cada uma das violações em diferentes ocasiões ao longo das atividades online do Tribunal.
Além do lançamento oficial no dia 10 de setembro e do Festival dos Povos do Cerrado no dia 11, serão realizadas duas audiências temáticas. Em novembro de 2022 acontecerá a audiência final deliberativa, em que será lida a sentença dada pelo júri.
Após o lançamento oficial do TPP e ao longo das atividades do tribunal, a Campanha Nacional em Defesa do Cerrado apresentará detalhes da peça de acusação e cada um dos 15 casos abordados.
O que é o Tribunal Permanente dos Povos
O TPP é uma instância de tribunal de opinião que procura reconhecer, visibilizar e ampliar as vozes dos povos vítimas de violações de direitos. O Tribunal existe para suprir a ausência de uma jurisdição internacional competente que se pronuncie sobre os casos de violações contra os povos.
O tribunal conta com um júri multidisciplinar, escolhido a cada nova sessão e de acordo com os casos apresentados. Os membros do júri são reconhecidos por sua independência e pela experiência em relação aos temas analisados. São membros da academia, juristas, jornalistas, artistas, lideranças populares e religiosas, entre outros.
Na sessão a ser realizada sobre o Cerrado, estão confirmados para compor o júri o espanhol Antoni Pigrau Solé, professor de direito internacional público; a jurista e ex-vice procuradora geral da República Deborah Duprat; o bispo da Diocese de Brejo (MA) Dom José Valdeci; a jornalista Eliane Brum; a socióloga venezuelana Rosa Acevedo Marin; a jornalista e pesquisadora uruguaia do Grupo ETC Silvia Ribeiro; a liderança indígena e coordenadora executiva da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) Sônia Guajajara; e a portuguesa Teresa Almeida Cravo, professora de relações internacionais. O jurista francês Philippe Texier também compõe o júri, e é o atual presidente do TPP. A vice-presidente é a deputada federal Luiza Erundina (PSOL).
As sentenças proferidas pelo júri do TPP não têm aplicação dentro do sistema jurídico formal do país em que é realizado. Um governante ou dirigente de uma empresa que sejam considerados culpados por um crime pelo júri do Tribunal não poderá ser preso, por exemplo.
Ainda assim, as sentenças proferidas pelo TPP são de extrema importância para os sistemas de justiça nacionais e internacionais, e para a opinião pública de uma forma geral, uma vez que expõem os vazios e limites do sistema internacional de proteção dos Direitos Humanos e, assim, pressiona para sua evolução.
“O que está na base do Tribunal do Cerrado é o entendimento de que os povos têm autonomia para construir historicamente suas formas próprias de relação com a vida, suas concepções de Justiça, e por isso seus direitos não são apenas aqueles reconhecidos pelo Estado e não podem depender somente da institucionalidade para serem legítimos. Nesse sentido, o Tribunal do Cerrado afirma, ao reconhecer os povos como construtores dos seus direitos, que a justiça brota da terra”, diz Valéria Pereira Santos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade membro da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado.
História do Tribunal
Entre 1966 e 1967, o filósofo britânico Bertrand Russell, juntamente com o filósofo francês Jean-Paul Sartre e o jurista italiano Lelio Basso, organizaram em Estocolmo (Suécia) e em Roskilde (Dinamarca) um evento que ficou conhecido como Tribunal Internacional de Crimes de Guerra, ou Tribunal Russell, e que serviu para investigar os crimes de guerra cometidos pelos Estados Unidos no Vietnã. Fizeram parte do tribunal o escritor Julio Cortázar, o ex-presidente do México Lázaro Cárdenas, a escritora e filósofa Simone de Beauvoir, e outras dezenas de personalidades de diferentes países e áreas de conhecimento.
Entre 1973 e 1976 foi realizado o Tribunal Russel II, que investigou as violações de direitos humanos nas ditaduras latino americanas, entre elas a do Brasil. O segundo tribunal teve sessões em Roma (Itália) e Bruxelas (Bélgica).
O Tribunal Permanente dos Povos (TPP) nasceu em Bolonha (Itália), em 1976, para dar continuidade aos tribunais Russell I e II. O jurista Lelio Basso, que foi membro e relator dos dois primeiros tribunais, propôs a transformação do evento em uma instituição permanente que pudesse ouvir e amplificar as vozes dos povos vítimas de violações dos direitos presentes na Declaração Universal dos Direitos dos Povos – também conhecida como Carta de Argel – publicada em 1976. A Declaração, elaborada em um momento histórico de prevalência de Estados de exceção na América Latina, reconhece os povos como titulares de direitos, e como sendo estes sempre os mais marginalizados no direito internacional.
Transformações e o crime de ecocídio
Desde seu início há 45 anos, o TPP já realizou cerca de 50 sessões internacionais que representam um verdadeiro testemunho dos temas mais prementes deste último meio século, acompanhando as transformações e lutas da era pós-colonial, o avanço do neocolonialismo econômico e a globalização. Nestas sessões, foram investigadas violações trabalhistas, megaempreendimentos, mudança climática, mineração transnacional, livre comércio, violações a direitos de jovens e crianças, guerras e genocídios.
Em seu documento mais recente, o Estatuto de 2018, o TPP atualiza a Carta de Argel como consequência dessas transformações e define o crime de ecocídio como sendo “o dano grave, a destruição ou a perda de um ou mais ecossistemas em um território determinado, seja por causas humanas ou por outras causas, cujo impacto provoca uma severa diminuição dos benefícios ambientais dos quais gozavam os habitantes do referido território.