30/11/2015 12:26
Camila Nobrega¹
Enquanto lideranças de vários países se preparam para debater acordos sobre projetos de mitigacão do aquecimento global que afetam diretamente áreas de floresta – como a Amazônia brasileira – povos tradicionais silenciados neste processo lutam para garantir autonomia nesses territórios. É o caso do povo Munduruku, da região do Médio Tapajós, no Pará, que receberá um prêmio pelo projeto de auto-demarcação do próprio território em uma das programações paralelas à Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 21), que começa hoje (30), em Paris.
Os Munduruku estão entre os 21 vencedores do Prêmio Equador, cujo objetivo é ressaltar alternativas locais que combinam soluções para pessoas e a natureza. A cerimônia de entrega do prêmio, organizado pela ONU, será no dia 7 de dezembro. O povo Munduruku iniciou o processo de auto-demarcação no território, após anos de espera sem ações por parte da Fundação Nacional do Índio (Funai). Como a terra indígena está na reta de interesses econômicos, como a previsão da construção da usina hidrelétrica de São Luis do Tapajós, a demarcação oficial da terra indígena Daje Kapap Eypi está paralisada. O território reivindicado, e há gerações ocupado pelo povo indígena, está localizado nos municípios de Itaituba e Trairão, oeste do Pará. O local fica a poucos quilômetros da área prevista para a construção da usina de São Luiz do Tapajós, de 8.040 megawatts.
Marquinho Mota, representante do Fórum da Amazônia Oriental (Faor), esteve presente em um debate sobre “Floresta, Direitos, Emissões – Povos tradicionais da Amazônia e a política climática internacional”, na capital alemã Berlim, e questionou: “Aí dizem que energia hidrelétrica é energia limpa. Uma energia que começa desse jeito pode ser chamada de limpa?” – perguntou durante o debate no Instituto Ibero-americano, no último dia 24 de novembro.
Auto-demarcação começou em 2014
Linhas fronteiriças podem parecer apenas abstrações de um território real, vivido no dia a dia, mas há situações em que elas podem gritar sobrevivência e se tornar instrumento de autonomia. E é exatamente por sua importância que elas são constantemente negadas e invisibilizadas, tornando-se motivo de conflitos Brasil afora. Foi percebendo isso que o povo Munduruku resolveu, há pouco mais de um ano, começar um processo árduo e bastante ousado de auto-demarcacao do próprio território. Facões e GPS em punho (sim, porque a tecnologia também pode auxiliar o conhecimento tradicional), mais de 60 indígenas Munduruku se voluntariaram a se embrenhar na mata na região do Médio Tapajós para iniciar a tarefa em conjunto. Neste processo, as Guerreiras Munduruku, grupo de mulheres da etnia que vivem e lutam na região, tiveram protagonismo durante o processo e na documentação da autodemarcação.
O Movimento Munduruku Ipereg Ayu vive sob tensão com medo de que parte das terras onde habitam sejam inundadas para a construção de, pelo menos, nove barragens na bacia do Tapajós. Algumas comunidades da região possuem terras demarcadas, mas existem outros grupos em aldeias como a Sawre Muybu ao longo do médio curso do Tapajós, próximo ao município de Itaituba, que não possuem o título da terra. Estes territórios são os mais ameaçados. Sem regularizar a situação, o governo brasileiro e os poderes econômicos locais, como o agronegócio em aliança com grupos internacionais, se tornam coniventes com as ameaças de violência e diversas violações de direitos às quais os indígenas estão submetidos atualmente.
Frente a uma plateia composta majoritariamente por europeus, Marquinho foi aplaudido ao explicar o processo de autodemarcação e a negativa dada pelo povo Munduruku a outras iniciativas de ajuda financeira, como o projeto de REDD (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação), que seria feito com uma obscura empresa irlandesa denominada Celestial Green Ventures. Por US$ 4 milhões divididos ao longo de 30 anos a empresa teria os direitos de comercializar créditos de carbono daquela área da floresta.
“Esses projetos de REDD (mecanismos que mais uma vez será debatido na COP 21) violam direitos dos povos tradicionais. A ideia é a floresta ficar preservada, mas o caboclo e o índio, por exemplo, perdem o direito de tirar uma palha para construir casa. Não queremos perder nosso direito à floresta para empresas internacionais poderem poluir livremente na Índia ou sei lá onde”, afirmou Marquinho Mota.
Quilombos lutam por visibilidade na luta por justiça ambiental
Assim como os povos indígenas, movimentos quilombolas estarão presentes em Paris, na tentativa de construir uma resistência às propostas de preservação ambiental que atropelam direitos das comunidades tradicionais. Ana Cláudia Mumbuca, quilombola da região do Jalapão, no Tocantins, também esteve presente no debate em Berlim e ressaltou o momento difícil que o Brasil vive, em uma luta diária contra retrocessos no Congresso Nacional: “Não podemos deixar que tirem os direitos dos povos tradicionais em nome do que chamam de preservação ambiental. Se o nosso território está preservado não foi apenas porque a natureza se manteve, mas porque existe trabalho humano ali, diário e integrado ao meio ambiente”.
Ana fez uma comparação com o trabalho das abelhas, que foi preservado ali. “Nós também somos as abelhas que polinizam a floresta e isso não é levado em consideração”.
São as abelhas que dão inclusive nome à região. Mumbuca é referência a uma abelha azul muito comum naquela localidade do Jalapão. O lugar se tornou famoso em textos sobre turismo na região do Tocantins e artesanato feito por mulheres com o capim dourado. Mas pouco se fala sobre os conflitos de terra a que as quilombolas e os quilombolas Mumbuca estão expostos nesse território, a cerca de 30 quilômetros do município de Mateiros, numa área próxima à rodovia TO-110. Junto com outros povos do Cerrado, eles lutam para dar visibilidade à degradação desse bioma, especialmente devido ao agronegócio que ocupa grandes faixas da região, criticando mudanças propostas na legislação, como a polêmica PEC 215.
Lutando contra a falta de espaço no debate público e na mídia, quilombolas e indígenas do Tocantins também iniciaram processos autônomos, por meio de instrumentos como a cartografia social. O objetivo é dar espaço à narrativa da população local.
Durante o debate, Ana mencionou a Marcha das Mulheres Negras que ocorreu pela primeira vez em Brasília, no dia 18 de novembro, reunindo mais de 20 mil mulheres. Ela contou sobre as ofensivas contra a marcha, por parte de grupos políticos conservadores do país e a repressão enfrentada pela ação da Polícia Militar. Recebeu o apoio direto de uma companheira do movimento negro de Camarões e foi aplaudida longamente pela plateia.
[1] Jornalista que cobriu o debate “Floresta, Direitos, Emissões – Povos tradicionais da Amazônia e a política climática internacional” em Berlim, Alemanha. Texto originalmente publicado no Canal Ibase.