05/04/2016 12:49

O modelo de “desenvolvimento” promovido na Pan Amazônia nas últimas décadas tem como base o planejamento e implementação de Grandes Projetos de Investimento (GPI) que viabilizem a privatização dos bens comuns da natureza, propiciando a extração e exportação para os mercados mundiais na forma de commodities. Os poderes públicos, em diferentes escalas, têm tido papel central no avanço desses projetos. Entretanto, tais dinâmicas refletem crescentemente interesse de poderes privados, integrados nos circuitos globais de acumulação de capital: as empresas transnacionais. E, para entender um pouco mais sobre essa relação entre o poder público e os interesses privados de grandes corporações instaladas neste território, a nova edição da Série de Entrevistas sobre a Amazônia¹ conversa com Diana Aguiar², integrante do Grupo Nacional de Assessoria da FASE.

Foto: Xingu Vivo Para Sempre

(Foto: Xingu Vivo Para Sempre)

Por que as empresas transnacionais são forças tão importantes na definição do modelo desenvolvimento da Pan Amazônia?

Para entender temos que olhar para processos que começaram a se consolidar na década de 70 e que entendemos como globalização neoliberal. Não é que grandes empresas com atividades econômicas transnacionais não existissem antes disso. De fato, sua emergência é contemporânea à própria emergência do sistema capitalista. Basta lembrar como, a partir do século XVII, a Companhia Britânica das Índias Orientais e a Companhia Britânica das Índias Ocidentais detinham uma enorme incidência sobre as políticas coloniais do Império Britânico no subcontinente indiano e no eixo do Atlântico, pois foram algumas das principais forças econômicas por trás do comércio mundial da época.

De que forma essa transformação em favor das forças econômicas privadas acontece?

As crises que muitas economias nacionais enfrentavam naquele momento, criou espaço para a narrativa triunfalista do ‘consenso’ neoliberal. Parte desse processo implicou em silenciar qualquer controvérsia. O mote era a afirmação de que não havia alternativa à austeridade neoliberal. Que, na prática, significou em um processo de desregulamentação financeira, liberalização comercial, privatizações e flexibilização de direitos, que foram promovidas como soluções para a crise. A partir desse novo contexto, o poder econômico foi gradativamente se concentrando muito e, em poucas décadas, algumas poucas empresas transnacionais passaram a controlar grande parte dos fluxos comerciais e financeiros do planeta. De acordo com um estudo de matemáticos suíços publicado em 2011, 147 empresas transnacionais controlam 40% da riqueza das pouco mais de 43 mil empresas transnacionais identificadas na economiamundo. Quando o movimento Ocupa Wall Street, no final deste mesmo ano, denunciava a concentração de renda nas mãos do 1% mais rico do planeta, eles não estavam falando metaforicamente. Essa classe capitalista transnacional concentra, de acordo com relatório recente da Oxfam, mais riqueza do que toda as demais 99% pessoas do planeta juntas.

Como esse processo chegou a América Latina e a Pan Amazônia?

Os países de nossa região receberam as novas regras da ditadura dos mercados, sobretudo através de programas de ajuste estrutural do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Programas de desenvolvimento em curso, com foco na industrialização e na tentativa de se afastar da ênfase na economia primária, foram, aos poucos, desmantelados até que o pagamento de dívidas se tornasse o principal imperativo da política econômica. Esse imperativo implicou em políticas de atração de investimentos e de fluxos financeiros (muitos meramente especulativos) estrangeiros através de incentivos fiscais e juros altos. Um aspecto difícil em nosso caso foi que o triunfo neoliberal coincidiu com o momento de redemocratização, configurando nas palavras da cientista política Evelina Dagnino como uma “confluência perversa”: justamente quando, com o alargamento da democracia, tínhamos o ânimo político interno para efetuar mudanças, os imperativos de mercado impostos pelas forças que dominavam o centro dos circuitos globais de acumulação, e adotados com gosto pela burguesia e pelos burocratas nacionais, cerceavam quaisquer horizontes alternativos.

Diana Aguiar

Diana Aguiar. (Foto: FASE Amazônia)

Como os Estados da região Pan Amazônica promoveram a chegada desses investimentos?

Essa é uma pergunta-chave, porque, apesar da “relativização” da importância da escala nacional na organização econômica, política e social a partir da década de 70, isso não implicou na substituição direta daquela escala por uma nova escala (seja global, regional, local ou urbana, etc.) tão primordial quanto foi a nacional no pós-II Guerra. Há disputas em curso, mas o Estado continua desempenhando um papel importante no estabelecimento das infraestruturas normativas e físicas para a acumulação de capital. Ainda que a lógica territorial de poder entre em contradição contínua com a lógica capitalista de poder, baseada em fluxos e movimentos tão fundamentais para a acumulação de capital, essa contradição implica em uma dialética de acomodações mútuas. Nesse sentido, diferentes poderes do Estado são instrumentais na organização da infraestrutura normativa para garantir a segurança jurídica aos investidores, tais como no caso do Brasil são as mudanças legislativas diversas ou o uso de mecanismos judiciais controversos. Há ainda os mecanismos extrajudiciais, como os Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), que têm demonstrado a ineficiência de mecanismos voluntários em garantir o acesso à justiça. O caso da Imerys, em Barcarena é notório: os TACs assinados entre essa empresa francesa e o Ministério Público não garantiram a solução da situação das comunidades atingidas pela contaminação causada pelo vazamento de barragem de rejeitos tóxicos da empresa.

Como as empresas transnacionais agem para garantir o acesso aos bens comuns sendo privatizados na Pan Amazônia?

Ao longo do tempo, as grandes empresas foram sofisticando suas estratégias de construção de hegemonia, mas algumas destas são tão antigas quanto as pilhagens dos primeiros processos de cercamento dos bens comuns. Ao visitar comunidades ameaçadas ou que já foram invadidas por GPIs, não é raro ouvir estórias de ameaças, muitas vezes através do uso de forças de segurança privadas, de perseguição, de criminalização, de difamação pública ou até de cooptação de lideranças a esses projetos. São muitas as estratégias utilizadas para fragmentar as resistências, sendo comuns as negociações individuais de compensações, estimulando boatos e competições no seio de comunidades que compartilham territórios há diversas gerações. Do lado mais “sofisticado” desse processo, estão estratégias de convencimento através da barganha de benfeitorias ou serviços que deveriam ser executados via políticas públicas como condição para a autorização do projeto pelas comunidades, o que chamam de “licenciamento social” (…). Recentemente, o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração denunciou que o PL do Novo Código da Mineração foi escrito do computador de um escritório de advogados de grandes empresas mineradoras. A imbricação entre o público e o privado é tal que torna-se cada vez mais difícil definir estratégias de como recuperar o debate público em favor de causas comuns e populares.

E como fazemos isso?

Não há resposta fácil. Os últimos anos deixaram explícita a crise da democracia representativa. Não reconhecemos a maioria dos políticos eleitos como representantes de causas públicas. Mas as respostas a isso têm sido a reivindicação extrema da democracia, de sermos nós mesmos seus defensores diretos. A ocupação das escolas públicas por jovens em São Paulo, sem dúvida foi um dos momentos mais inspiradores dessa emergente cultura política democrática de “baixo pra cima”. Quando o povo indígena Munduruku faz a autodemarcação de seu território ou publica o seu protocolo de consulta, deve acontecer de acordo com sua cultura política ancestral, eles e elas estão reivindicando uma democracia popular e participativa.

Leia a entrevista na íntegra.

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[1] Uma iniciativa do programa da FASE na Amazônia, com o apoio da Fundação Heinrich Böll e do Fórum da Amazônia Oriental (FAOR).
[2] Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR/UFRJ).