26/04/2016 14:56

Gilka Resende¹

Se o indígena Giovane Krenak, de 31 anos, pudesse fazer um pedido a cada um dos acionistas da Vale, diria: “pare de financiar uma empresa que tem empreendimentos que geram destruição”. Ele esteve ao lado de outros integrantes da Articulação Internacional das Atingidas e Atingidos pela Vale em aula pública no Largo da Carioca, Centro do Rio de Janeiro, nesta segunda-feira (25). Saiu de sua aldeia, às margens do Rio Doce, para dar seu recado à população urbana: “meu povo está sofrendo com o crime cometido contra o rio sagrado”. Em outra ponta da cidade, em um shopping na Barra da Tijuca, bairro elitizado da zona oeste carioca, oito “acionistas críticos” se esforçavam para ocupar o microfone na assembleia anual da empresa. O objetivo era entregar uma moção com reivindicações, dentre elas a renúncia dos que ainda ocupam cargos na Diretoria Executiva, no Conselho da Administração e no Conselho Fiscal da Vale, mesmo após o rompimento da barragem do Fundão em Mariana (MG).Arte 2A assembleia acontece quando o “maior crime ambiental da história do país” está prestes a completar seis meses. Quem possui ações da companhia tem direito à voz e voto. Os “acionistas críticos” apontam que a decisão da mineradora em “aumentar a produção e cortar gastos foi determinante para a ocorrência da tragédia da Samarco”, controlada em partes iguais pela anglo-autraliana BHP Biliton e pela brasileira Vale. “O presidente da mesa na assembleia se recusou a receber a moção de início, alegando que ela não estava entre os pontos de pauta. Mas insistimos e, ao final do evento, conseguimos apresentar o documento e fizemos a entrega formal ao diretor de relações com investidores”, conta Raphaela Lopes. A advogada explica, porém, que isso não significa que o texto será anexado à ata da assembleia, como determina o artigo 130 da lei das empresas de sociedade anônima, como a mineradora.

Exposição sobre o crime ambiental em Minas Gerais. Foto: Rosilene Miliotti / FASE

Exposição sobre o crime ambiental em Minas Gerais. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Já a aula pública no Centro do Rio, promovida em vão aberto cercado por arranha-céus empresariais, começou por volta de meio dia e reuniu cerca de 50 pessoas. Houve intervenções culturais e exposição de fotos. Muitos pedestres olhavam rapidamente, pegavam panfletos e seguiam o ritmo da metrópole. Outros paravam um pouco mais para escutar os depoimentos dos que sofrem mais diretamente com os impactos da mineração. Foi o caso de Wanderley Conceição, de 56 anos, que trabalha com reformas de casas e apartamentos. “Fiquei interessado pelo tema. É muito espinhoso hoje em dia você fazer um trabalho comunitário. Estou vendo solidariedade aqui, como se o que aconteceu em Minas Gerais tivesse sido com os seus parentes”, relatou. E completou: “A empresa não olhou quem está atrás ou na frente, só os seus próprios bens. Foi ganância”.

O Relatório de Administração e Demonstrações Financeiras 2015 da Vale reforça essa interpretação. O documento mostra, por exemplo, que a mineradora chega a pagar R$ 800 mil mensais a apenas um de seus diretores. Os “acionistas críticos” votaram pela reprovação do documento por crerem que contém contradições e ausência de transparência. “A diretoria atual aparenta não ter controle algum sobre a empresa e a remediação dos custos decorrentes do rompimento da barragem. As ações da empresa valem cada vez menos”, opina Raphaela, que também é da Justiça Global.

Diálogos sobre natureza e fé

Para Wanderley, o problema todo acontece porque “mexem com a natureza”. “O que estão caçando quando arrancam uma árvore? Um sol que queima por causa da falta de sombra!”, exclamou. Mesmo tendo uma vida tão diferente da que leva Giovane, suas palavras estão de acordo com que ensina o indígena. Com a força da lama, as árvores que foram ao chão levaram bem mais que a proteção da luz solar. “A matéria prima para fazer as flechas era retirada principalmente das ilhas no rio, que ficaram todas contaminadas”, relatou Giovane, que exibia uma pintura que cobria parte do rosto, todo o pescoço e o peito. “Também perdemos pés de jenipapo [com o qual se faz a tinta natural]”, lamentou.

Colagem de cartazes na antiga sede da Vale, no centro do Rio de Janeiro. Foto: Rosilene Miliotti / FASE

Colagem de cartazes na antiga sede da Vale. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

“Tem que falar, gritar, botar a cara para acordar as autoridades que não estão nem aí para os problemas das pessoas”, opina Wanderley, reforçando que “a Justiça do homem falha, mas a de Deus não”. Porém, pelo que Giovane conta, até as expressões de religiosidade dos cerca de 400 indígenas que vivem no município mineiro Resplendor, a cerca de 400 quilômetros de Mariana, foram desrespeitadas. “Acabaram as plantas de beira do rio usadas para as nossas curas, era nossa medicina contra as enfermidades”, diz ele, lembrando que no lugar só restou “uma lama grossa” e “uma areia que dá coceira”. Mesmo querendo falar diretamente com os acionistas e os diretores da Vale, o indígena expõe dificuldades no entendimento. “Eles dizem que só podem pagar pelo que podem pegar. Mas tudo que aconteceu, além das águas e da nossa alimentação, afetou nossa cultura. Temos uma relação espiritual com o Watu [rio Doce em na língua Krenak]”, explica.

Violações que atravessam décadas

“Desde os anos 1980, a Estrada de Ferro Carajás impacta a Amazônia. Com sua duplicação, que começou há poucos anos, a situação piorou”, afirma Marlúcia dos Reis, de 34 anos, que viajou de Buriticupu, no Maranhão, para participar das atividades no Rio. Segundo ela, o município reúne oito comunidades diretamente afetadas pela Vale. De acordo a Associação Nacional de Transportes Ferroviários (ANTF), a linha férrea em questão tem 892 quilômetros e sua expansão consiste na duplicação de 625 quilômetros de trechos no Maranhão e no Pará. A própria Vale descreve, em seu site, que o empreendimento servirá para escorar minérios retirados em Canaã dos Carajás, mina considerada como “o maior projeto de minério de ferro da história” da empresa.  A estimativa é de que haja um incremento na extração anual, passando de 340 milhões de toneladas, em 2015, para cerca de 450 milhões, em 2020. A maioria seria embarcada principalmente rumo a siderúrgicas chinesas, que representaram quase 40% da receita bruta da Vale em 2014.

Grafite produzido durante intervenção na frente da antiga sede da Vale. Foto: Rosilene Miliotti / FASE

Grafite produzido durante intervenção no Centro do RJ. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Ainda segundo a mineradora, o empreendimento impactaria “positivamente na balança comercial do país” e serviria como um “novo impulso ao desenvolvimento econômico e social” aos dois estados envolvidos. No entanto, integrantes da Articulação dão outras versões para a imagem que a Vale tentar passar à opinião pública. Depoimentos reforçaram que a mineradora, que venceu o prêmio em 2012 de pior empresa do mundo, se tornou “símbolo de desrespeito”. “Estamos aproveitando a assembleia dos acionistas para falar que essa é uma luta comum a diversos territórios”, ressalta Marlúcia, que é da Justiça nos Trilhos. Ela conta que a perturbação da Vale em sua região começa “pelo barulho do trem”. “Dia e noite as famílias convivem com os vagões passando a sua porta. Com a trepidação, as casas ficam com rachaduras. Pessoas e animais são atropelados. Essas famílias são ribeirinhas, são assentadas da reforma agrária. Elas têm que atravessar a linha férrea para ir até seus locais de trabalho. Fazer roça, chegar ao rio para pescar”, descreve.

De quando em quando, como conta Marlúcia, parte das comunidades ocupa a ferrovia para cobrar a construção de passarelas e viadutos. “Mas a empresa promove perseguição. Eles precisavam discutir um projeto mais humano”, cobra. A própria Justiça já chegou a apontar irregularidades na duplicação. Uma ação do Ministério Público Federal (MPF) de 2015 acusa a Vale, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto do Meio Ambiente (Ibama) de não realizarem a consulta prévia, adequada e legal, um direito assegurado mundialmente pela Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT),  às populações diretamente impactadas por obras como essa.

Não vale aqui e nem em outros países

A Articulação é composta por organizações, sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas, grupos religiosos e comunidades prejudicadas pela mineradora. Denuncia, desde 2010, “a prática constante de violação dos direitos humanos e ambientais da Vale”. “De Eldorado dos Carajás a Mariana, do Peru a Moçambique, do Canadá à Indonésia: A ‪Vale viola direitos pelo ‪‎mundo”, destacou o panfleto distribuído nas ruas. Após a aula pública, parte dos manifestantes seguiu em cortejo até a antiga sede da mineradora, a poucos quarteirões do Largo da Carioca. Eles deixaram suas “assinaturas” com grafites e cartazes afixados em tapumes, que bloqueiam a entrada do prédio desde que a sede da empresa foi transferida para a Barra da Tijuca. “Quantas lágrimas disfarçamos sem um berro”, “o rio é doce, a Vale amarga” e a “lama que ganha gestos defuntos” foram algumas das frases escritas nas paredes ou faladas ao microfone.

Final do ato. Foto: Rosilene Miliotti / FASE

Final do ato. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Os presentes lembraram também que a Vale é uma “transnacional verde e amarela” que viola direitos em 13 estados brasileiros e em 27 países.  “É uma empresa só articulando todo um projeto”, concluiu Francisley Lino, do Movimento dos Atingidos pela Mineração (MAM). Ele chamou atenção para atual terceirização na empresa, que leva “perigo de vida para seus trabalhadores”, e reivindicou a reestatização a Vale. “O setor privado quer  lucro acima de tudo. Mesmo sabendo que tem comunidades ali, sempre quer tirar para poder minerar”, disse. Porém, um caso lembrado durante o ato demonstra que a questão vai além: o Massacre de Eldorado dos Carajá², por exemplo, ocorreu antes mesmo de a empresa ser privatizada. Em 1996, 21 militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram assassinados e centenas ficaram feridos. A Articulação relembrou que, nos autos do processo, a Vale é citada como financiadora dos gastos para que as tropas da polícia militar chegassem ao local onde se realizavam ações por reforma agrária.

Diante da atual realidade, para Gabriel Strautman, do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), assim como para as entidades que integram a Articulação, é preciso debater o atual modelo de desenvolvimento proposto pela Vale, por outras transnacionais e até mesmo pelo Estado. “Os acionistas críticos compraram ações para fazer denúncias lá na assembleia. Para dizer que o dinheiro da Vale vira lucro, mas também destruição, sangue, morte. Essa mineradora precisa ser responsabilizada pelo que comente nos territórios”, conclui.

[1] Jornalista da FASE, organização que também  integra a Articulação Internacional das Atingidas e Atingidos pela Vale.

[2] Esta reportagem faz parte da série “De Carajás a Mariana – relembrar o passado, resistir no presente e enfrentar o futuro”, elaborada pela FASE.