02/08/2016 13:10
Gilka Resende e Pedro Martins¹
A Jornada de Lutas “Rio 2016: Jogos da Exclusão” foi aberta nesta segunda-feira (1º) com a realização da Vigília da Dignidade, na Cinelândia, Centro da cidade do Rio de Janeiro. O evento, que envolveu organizações, movimentos sociais e religiosos, nacionais e internacionais, levou à praça debates sobre desigualdades sociais e ambientais, preconceitos, violações de direitos humanos, como de acesso à saúde, educação e transporte públicos e de qualidade. Uma grande tenda branca foi a “casa comum” para católicos, protestantes, praticantes da religião wicca, celta, do candomblé, da umbanda, dentre outras. Foram acolhidos, independente da religião ou da falta dela, todos e todas que têm fé na luta pela vida.
As várias rodas de diálogos, apresentações culturais e troca de saberes demonstraram as resistências dos povos às injustiças da “sociedade de mercado”. Em carta, as instituições envolvidas na realização da Vigília reforçaram que estar nas ruas, em meio ao atual contexto político e econômico brasileiro, significa “um gesto pela Democracia”. Esse objetivo ficou explicito em cantos, faixas e cartazes. As atividades se estenderam até 21h, com depoimentos e celebrações em um palco montado ao lado da tenda, que recebeu a programação, iniciada às 14h. O abraço de um franciscano em um muçulmano resumiu um dos principais sentidos da Vigília: promover a tolerância e o encontro entre os povos. Isso, porém, sem deixar de fazer a crítica à violência do sistema político e econômico dominante.
Para consolidar a “dignidade”, por vezes banalizada, Mãe Ialorixá Adriana Martins explicou o significado do termo:“Dignidade é fazer um diálogo em que pensemos a sociedade para todo mundo, respeitando cada segmento dela. Temos de dizer que o caminhar é coletivo, mas desde que a laicidade, o gênero, a orientação sexual de cada um seja respeitada. Isso é andar com dignidade”.
Discriminação e defesa de direitos
O extermínio da juventude negra foi relacionado à discriminação sofrida pelas religiões afro-brasileiras. Depredações às casas de Axé, por exemplo, foram interpretadas em um contexto histórico de “supremacia branca e rica”. Além da questão religiosa, a guerra às drogas foi lembrada como elemento promotor do racismo. Adriana acredita que “na proposta atual do capitalismo no Brasil e no mundo não tem lugar para a juventude negra, por isso quer o extermínio dessa população”. Ela afirmou, ainda, que as reformas que estão sendo apresentadas como prioritárias pelo governo interino de Michel Temer (PMDB) atingem principalmente as negras e negros: “As mudanças na previdência social, em especial, vão afetar a população negra, pois é quem começa a trabalhar mais cedo. As meninas negras, por exemplo, iniciam o trabalho como domésticas, aos 14 anos. Se você começa a trabalhar com 18 anos e se aposenta aos 70, trabalha até morrer”, analisou.
João Pedro Stédile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), também chamou atenção para a situação política vivida no país:“Esse golpe, que tem três meses, já demonstrou quais são os seus verdadeiros interesses. Não se trata apenas do desrespeito ao voto, mas, sobretudo, de aumentar a exploração dos trabalhadores. Significa tirar direitos, diminuir salários e promover desemprego. É uma forma de derrotar, de humilhar os trabalhadores. Já alcançamos 15% de desemprego no país. Querem, agora, tirar os direitos sociais que conquistamos ao longo de 100 anos”, analisou. E completou: “O último projeto aprovado autoriza a venda das terras brasileiras ao capital estrangeiro. Nós, dos movimentos do campo, temos dito: o nosso objetivo é promover alimentação saudável para toda a população. Para isso, vamos intensificar as ocupações de terras”.
Aos pés do palco, os presentes seguravam velas representando esperança. Todos e todas ouviam Stédile dizer que, no atual contexto, as olimpíadas são uma “afronta ao povo brasileiro”. Porém, ele acredita que existem espaços para reações coletivas. Nesse sentido, fez questão de destacar que atividades como a Vigília renovam energias e aproximam mais segmentos da população, debatendo política a fim de resistir à ruptura democrática. “Nós, da Via Campesina, estamos discutindo com outros movimentos populares e sindicais uma greve geral. Os mais ricos só entendem o recado dos trabalhadores quando sentem o prejuízo no bolso”, ressaltou.
Gênero, cultura e natureza
Mais cedo, em uma roda de diálogo, Moema Miranda, diretora do Ibase, ressaltou que a tomada dos espaços públicos pelos interesses das corporações acontece em nível nacional e internacional. “O grande desafio é socializar conhecimentos e reforçar o papel da sociedade civil no sentido de reverter o atual quadro de apropriação da natureza para os negócios”, analisou. Ela fez um paralelo com as mudanças climáticas, já que para garantir padrões lucros, megacorporações intensificam a exploração de riquezas naturais. A aceleração da exploração do minério, de matérias primas e do petróleo aprofunda causa impactos que afetam, em especial, populações mais empobrecidas pelo mundo.
Questões relacionadas à busca pela igualdade de gênero também receberam atenção na Vigília. Inamar Corre de Sousa, da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, é reverenda. Para ela, essa realidade de preconceito é combatida no cotidiano. “Quando as primeiras comunidades receberam as mulheres para celebrar cerimônias, houve muita curiosidade. Mas logo fomos provando que somos capazes, assim como mulheres motoristas de caminhão, de ônibus”, comparou. Ela, que cresceu na religião, usa o característico colarinho clerical, mais visto nas batinas dos padres. “Quando me abordam perguntando, costumo brincar que sou uma ‘padre mulher’”, explica. Ainda que a sacerdotisa tenha o direito de realizar casamentos e outras cerimônias, diz que existem conquistas a ser obtidas: “No Brasil, há uma dificuldade de as mulheres dirigirem o clero. Se no país, só 9% das mulheres estão ocupam o Congresso, na nossa igreja temos 0% delas no cargo máximo, que é o episcopado. Ainda é difícil aceitarem uma mulher liderando homens”.
Povos indígenas se expressaram expondo artesanatos e promovendo exercícios com bastão de madeira e danças, como o xondaro e o tangará, rituais de preparação de guerreiros e guerreiras, respectivamente. Também estenderam uma grande faixa pedindo a imediata demarcação de seus territórios tradicionais. Letícia Randi Obá disse que dignidade é ter o direito à terra. “É a nossa continuidade”, pontuou. Já Tupã Guarani Madya, outra liderança indígena, lembrou que “o Brasil não conhece ou reconhece sua própria diversidade cultural”. Para ele, o “grande inimigo dos povos é o progresso”. “Não entendo esse progresso. Ele destrói a natureza, polui os rios e derruba as florestas. Somos um povo que defende tudo que o progresso quer destruir”, constatou.
Jornada de lutas
Giselle Tanaka, da campanha Jogos da Exclusão, afirmou que os jogos olímpicos teriam que simbolizar a união de continentes, porém foram capturados pela lógica do mercado. “São utilizados como instrumento de propaganda para vender de produtos licenciados até as próprias cidades-sede. Os megaeventos esportivos têm mercantilizado espaços e legitimado violações de direitos humanos”, expôs. Entre outros pontos, frisou que houve uma na cidade uma “completa falta de compromisso com o esporte como direito e mecanismo de integração social”. “Pelo contrário, houve o fechamento de locais de práticas de esportes, como Estádio de Atletismo Célio de Barros e o Parque Aquático Júlio Delamare, onde treinavam atletas e a população em geral”, exemplificou.
A Vigília da Dignidade no Rio de Janeiro² integrou uma Jornada de Lutas que inclui mais de 100 organizações, movimentos sociais e grupos. As atividades acontecem até a próxima sexta-feira (5), com uma manifestação na praça Sans Peña, na Tijuca, zona norte. O local foi escolhido por já ser ligado às manifestações críticas à maneira como os megaeventos esportivos são promovidos e por estar próxima ao Maracanã.
Lembrando a repressão vivida durante a Copa das Confederações, em 2013, e a Copa do Mundo, em 2014, a articulação reforça que, no passado, o estádio foi símbolo do esporte na cidade. Agora, é “um monumento da transformação do público em privado, do popular em elitizado”.Estar na praça na abertura dos Jogos é a continuação dessa trajetória de lutas marchou levando pautas contra as remoções e a militarização das favelas. Não podemos naturalizar a violência institucional e pensar que há um terreno proibido para nós”, expôs. Com os olhares do mundo sobre o país e sobre a cidade, Giselle reforçou ainda ser essencial que “a garantia do direito a se manifestar não esteja apenas em papéis e discursos, mas que efetivamente presente nas ruas”.
Promovida por organismos como o Conselho Mundial de Igrejas (CMI), The Peoples Movement for Human Rights Learning (PDHRE), Unicef e mais de 30 entidades brasileiras, a Vigília é o ápice de um movimento global que conta com ações em outros 11 países (Portugal, Áustria, Gana, Índia, Estados Unidos, Canadá, Argentina, Colômbia, Nova Zelândia, Kosovo e Costa Rica). No Rio de Janeiro, a Tocha na Vigília da Dignidade foi enviada ao Morro da Mangueira, um dos tantos a sofrer com remoções de moradias na cidade, e lá ficará até o fim dos Jogos Olímpicos.
[1] Jornalistas da FASE e do Ibase, com a colaboração de Iara Moura, do PACS. Integrantes do coletivo de cobertura da Jornada de Lutas Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão.
[2] A FASE ajudou, desde o início, na construção da Vigília da Dignidade. Leia a carta assinada por todas as entidades envolvidas.