01/08/2017 13:50
Diana Aguiar¹
Confrontado com o megaprojeto de um complexo hidroelétrico sobre os seus territórios, o povo indígena Munduruku, da bacia do rio Tapajós na Amazônia brasileira, rejeitou a forma como os agentes do Estado tentavam realizar o processo de Consulta Indígena. Organizaram então uma série de reuniões, onde estudaram os pressupostos e o conteúdo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), interpretando-a de acordo com os rituais e costumes de sua cultura política ancestral. Desse processo, resultou em um protocolo, adotado na Assembleia Munduruku, no qual afirmam como deve ser um processo de Consulta para que seja reconhecido por este povo indígena como livre, prévio e informado. A partir de aí, entregaram o Protocolo de Consulta ao Estado brasileiro. O Protocolo, afirma o povo Munduruku, é lei.
O que pode parecer um fato isolado é, ao contrário, a expressão de uma prática social disseminada e incessante: os povos de todo o planeta formulam normas, de forma autônoma ou em diálogo com o Direito estabelecido, e reivindicam o reconhecimento e a realização dos seus direitos. O próprio Direito estabelecido reflete as disputas entre estas práticas contrahegemônicas de construção social do Direito e as forças hegemônicas que buscam garantir as bases reguladoras para a acumulação de capital e a concentração de poder político. Portanto, os direitos reconhecidos não foram outorgados aos povos por legisladores em parlamentos. São antes resultado de lutas populares construídas por inúmeros braços e consciências. São também, devido a isso, tragicamente, alvo de constantes ataques.
A análise que nos é presenteada por Juan Hernández Zubizarreta ilumina a compreensão de um desses processos, no qual forças sociais de base popular se mobilizaram para a construção de um documento e processo, o Tratado dos Povos, que é, ao mesmo tempo, espelho e instrumento de lutas de resistência e de construção de alternativas frente ao poder e a impunidade das empresas transnacionais.
A Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo e Parar a Impunidade foi lançada na Cúpula dos Povos da Rio+20, em junho de 2012, sendo herdeira política de um processo prévio, condensado nas audiências do Tribunal Permanente dos Povos, e realizado no marco da rede birregional Enlazando Alternativas. O parecer da audiência final (Madri 2010) sistematizava a magnitude dos desafios expressos nos 48 casos apresentados ao longo do processo. Constatava-se que as políticas neoliberais tinham não somente facilitado a concentração de poder econômico e político nas mãos das empresas transnacionais, mas também que tinham constituído uma estrutura jurídica que lhes permitia violar direitos humanos dos povos e da natureza, de maneira sistemática e com certeza de impunidade.
Desde a constituição da Campanha Global e seu lançamento, a luta pelo desmantelamento da arquitetura da impunidade foi estabelecida como um eixo fundamental da rede. Isto implica na resistência aos Tratados de Livre Comércio e Tratados de Proteção a Investimentos, existentes e em negociação, mas também na reivindicação da supremacia dos Direitos Humanos, do Direito dos Povos e dos Direitos da Natureza sobre os interesses dos investidores. A demanda por um instrumento vinculante de Direito Internacional para responsabilizar as empresas transnacionais é consequência direta desta interpretação.
Em sintonia com as tradições de construção social do Direito e com as urgências e necessidades concretas das lutas de resistência às violações e violências brutais constitutivas do modo de operar das empresas transnacionais nos territórios, a Campanha jamais considerou que tal instrumento jurídico seria dado de presente aos povos. Ao mesmo tempo em que reúne movimentos, organizações e redes que lideram ou apoiam as lutas de resistências em diferentes territórios, a Campanha organizou um processo de redação e consultas que resultou no lançamento do Tratado dos Povos, em 2014, como documento vivo e processo político coletivo, ancorado nas lutas populares.
Assim, enquanto o mundo se afunda em uma maré conservadora de proporções devastadoras, enquanto os princípios democráticos são postos em xeque com a ampliação do domínio das forças privatistas… enquanto isso, nos territórios mais diversos do planeta e em diferentes escalas de ação, os povos se mobilizam e resistem, constroem e vivem formas alternativas de ser, saber e produzir. As forças hegemônicas tentam silenciá-los. Entretanto, eles se movem.
[1] Assessora do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE e doutoranda no IPPUR / UFRJ. A FASE é integrante da Campanha Global para Desmantelar o Poder Corporativo e Parar a Impunidade. De 2012 a 2015, Diana atuou na facilitação global da Campanha. Texto traduzido por Kaio Tavares.