15/01/2018 15:27
Raine Robichaud¹
Apesar da mais antiga favela do Rio, o Morro da Providência, ter celebrado seu aniversário de 120 anos em novembro de 2017, foi apenas 50 anos depois, em 1947, que as favelas da cidade passaram a ser incluídas nos mapas oficiais da cidade, uma restrição visual que refletiu em exclusões espaciais mais amplas de oportunidades e até mesmo de serviços básicos como entregas dos Correios. Em anos mais recentes, bairros que não foram mapeados digitalmente também foram excluídos de serviços com base na localização, como o Uber².
Em antecipação à Copa do Mundo de 2014 e aos Jogos Olímpicos de 2016, o Google e a Microsoft competiram para ver quem seria o primeiro a mapear as favelas “desconhecidas” do Rio, embora durante o mesmo período de tempo, o Google tenha removido a palavra “favela”de seus mapas online a pedido da prefeitura da cidade. Em agosto de 2016, o Google e o AfroReggae haviam mapeado 26 das mais de mil favelas do Rio. Contudo, a página de seu projeto “Tá no Mapa” sugere que os avanços pararam por aí.
As iniciativas do Google e da Microsoft indicam um aumento da visibilidade das favelas no mapeamento. Entretanto, não importa a aparente sofisticação técnica, pois esses mapas que existem tendem a falhar quanto às representações físicas e sociais mais significativas e práticas das favelas, indicando uma necessidade não atendida de incorporar conhecimento local a essas representações.
O jornalista Michel Silva, morador da Rocinha, fundador do jornal comunitário Fala Roça e criador do Mapa Cultural da Rocinha, notou que “a presença das favelas no Google Maps era muito deficiente”, então ele construiu seu mapa em resposta. O Mapa Cultural documenta mais de 100 pontos locais de interesse, como um parque ecológico, locais de reunião de diversos grupos de ativistas do Rocinha Sem Fronteiras, um coral comunitário e numerosas escolas, creches e unidades de saúde, todas que servem para destacar a extensão da vida local que está ausente de outros mapas da comunidade.
Além disso, as limitações dos mapas online do Google e dos mapas oficiais da prefeitura incluem a falta de confiabilidade em relação à habilidade das imagens de satélite de distinguir entre um telhado de cimento e uma rua, o que resulta na má representação e na rotulagem incorreta da morfologia em camada das favelas. Em outros mapas, Michel diz que “as favelas – em sua maioria – são borrões verdes que sinalizam floresta. Mas nesses morros existem muitas vidas”.
Michel também critica a diferenciação do conceito de “mapear as favelas” do “mapear a cidade”. “A favela é cidade”, e deve ser representada como uma continuidade do restante da cidade nos mapas”, ele argumenta. Embora alguns projetos de mapeamento desenvolvidos localmente usem o formato aéreo padrão do Google como modelo, mudanças sutis mostram que eles foram manipulados para refletir melhor as percepções dos moradores. Descrevendo o Mapa Cultural da Rocinha, Michel disse: “Observe que quando você acessa o site o mapa não abre em cima da Rocinha. Ele abre mostrando a cidade do Rio de Janeiro. Isso é importante porque a Rocinha também faz parte da cidade”.
O mapeamento participativo
O mapeamento participativo e a cartografia social [também chamada de cartografia insurgente] são termos que descrevem dois diferentes processos que buscam abordar o controle do cidadão sobre o processo de mapeamento. “Mapeamento participativo” pode se referir a projetos com uma variedade de níveis de participação pública, em que os cidadãos auxiliam apenas na coleta de dados – como por exemplo estar com equipamentos para tirar fotos das ruas para o Google – ou projetos liderados por organizações comunitárias como a Redes da Maré, em que o processo de mapeamento uniu um projeto de censo comunitário com um projeto para compilar as histórias de bairros individuais no Complexo da Maré.
Como o mapeamento é um processo incremental, cada etapa deve ser avaliada por seu grau de participação. A arquiteta Nicoli Santos Ferraz divide essas fases do mapeamento em “ideia, iniciação, planejamento, coleta de informação e inserção no mapa”. Projetos de mapeamento participativo tendem a empregar a participação do cidadão durante a fase da “coleta de informação”, muitas vezes não incluindo grupos locais nas tecnologias de mapeamento. Alguns exemplos que seguem este modelo incluem o Mapeamento Digital da Unicef, liderado por adolescentes e jovens, e o “Tá no Mapa”, do Google e do AfroReggae, que envolvem o público na coleta de dados, mas a montagem e a formatação final do mapa é determinada por partes externas. É importante notar o real valor que também resulta deste tipo de abordagem: o projeto de mapeamento do Unicef, por exemplo, integra um aplicativo para capturar evidências de injustiças que, de outra forma, não seriam tornadas públicas.
A cartografia social
A cartografia social se diferencia dessa metodologia na medida em que os participantes recebem autonomia em todos os processos do projeto. Fransérgio Goulart³, um membro ativo do Fórum de Juventudes do Rio de Janeiro, descreve a cartografia social ou insurgente como sendo “construída pelo processo autônomo e solidário de grupos sociais que, ao adquirirem consciência política sobre o papel da cartografia, passam a replicá-las no seu fazer cotidiano fortalecendo as suas lutas por direitos identitários, territoriais, por políticas públicas e no enfrentamento ao racismo, machismo e ao capitalismo”. Ele diz ainda que esse processo autônomo é essencial para o afastamento do “processo normativo de mapeamento institucional”. A abordagem da cartografia social encoraja o mapeamento mental – representando a experiência individual no espaço – através de toda e qualquer forma de expressão, incluindo o desenho à mão e representações em quadrinhos, livre da pressão de usar símbolos ou formatos consistentes.
A cartografia ganhou fama com o sucesso do projeto da Nova Cartografia Social da Amazônia, na cidade de Manaus, e tem sido utilizado pelo Fórum de Juventudes em diversas favelas da cidade e pela FASE para mapear os efeitos da militarização nas vidas das mulheres nas comunidade do Caju e Manguinhos. A metodologia da Nova Cartografia Social da Amazônia exige altos níveis de controle por participantes: “pesquisadores ensinam técnicas de GPS [Global Positioning System, em português “Sistema de Posicionamento Global] e de mapeamento, além de conversar com os agentes e coletar depoimentos sobre a história social e problemas da comunidade” para permitir que os membros da comunidade deem mais opiniões fundamentadas sobre o processo de mapeamento e estejam o mais envolvidos possível.
Fransérgio explica que “a boa cartografia social é quando os símbolos e as imagens são desenvolvidas pelas próprias pessoas. Então, se a organização leva bolinhas vermelhas, isso já é externo. Não que não possa ter uma equipe externa para facilitar o processo cartográfico, mas eu acho que isso impede [o processo]. Então, os próprios símbolos trazem muitas informações”. O projeto cartográfico social do Fórum de Juventudes buscou “identificar, mapear e georreferenciar as violações de direitos e as violências específicas contra os jovens negros das favelas ‘militarizadas’”. Foi dado aos jovens participantes o poder de construir a hierarquia visual de seus mapas, decidindo que elementos destacar e como. Quando pedidos para refletir sobre a presença da polícia nas comunidades, os jovens contribuíram com “informações que vão até de encontro com as que temos… [nos] dados oficiais”, observa Fransérgio. Localizações significativas para os participantes, que podem, ou não, serem notadas por organizações externas, se apresentam como característica central nesses exercícios. Em uma matéria para o Ibase, Goulart explica que “aos poucos, as favelas foram aparecendo no papel com elementos que normalmente são silenciados/ocultados em mapas tradicionais. Apareceram locais de ponto de encontro dos jovens, quadras onde se realizam festas, saraus, debates, campos de futebol, creches, escolas e outros elementos que muitas vezes são invisibilizados em representações da favela feitas por pessoas de fora dela”.
Ao incentivar os participantes a se expressarem por uma variedade de meios, há a liberdade para customizarem seus mapas com suas experiências específicas. “Essa é uma diferença [do mapeamento participativo]… os próprios indivíduos constroem as informações sobre uma determinada realidade através do desenho do mapa”, explica Fransérgio. Um mapa que expresse melhor as realidades locais é mais provável que ajude a revelar suas necessidades e potenciais soluções. O projeto de mapeamento do Fórum de Juventudes, por exemplo, resultou na criação do aplicativo “Nós por Nós”, que é uma plataforma para denunciar a violência policial. Os usuários podem fotografar ou filmar crimes e abusos de policiais, e o conteúdo é automaticamente carregado para a nuvem e geolocalizado em caso de danos ou destruição do dispositivo por parte da polícia.
No entanto, como a cartografia social depende das experiências individuais, ela pode ser vista com um pouco de apreensão pelos participantes. O relatório da FASE sobre seu projeto de cartografia social no Caju e em Manguinhos explica: “Desde o princípio elas [as participantes] sabiam que quando construíram os mapas, eram as suas experiências particulares que iriam narrar aquele espaço, e isso inicialmente lhes trouxe estranhamento e hesitação, mas depois culminou em uma progressiva apropriação do processo e também dos produtos dele: os mapas”.
Tanto o mapeamento participativo quanto a cartografia social são importantes para a reforma institucional dos mapas e para a criação de versões que sejam adequadas às necessidades e ao empoderamento das comunidades. Ambos questionam os processos tradicionais de mapeamento enfatizando a flexibilidade para ajustar a circunstâncias locais específicas e mostrar conteúdo relevante para o local, em vez de seguir um formato padronizado, estático e distante. Assim, eles podem servir aos membros da comunidade e aos esforços dos ativistas para o aumento da visibilidade e da compreensão da complexa diversidade que faz parte das favelas do Rio, desafiando as narrativas genéricas e improdutivas sobre a violência e a pobreza ao destacarem a ampla variedade de experiências e perspectivas que caracterizam estes bairros.
[1] Artigo publicado originalmente no site RioOnWatch.
[2] Empresa multinacional dos EUA, prestadora de serviços na área do transporte privado urbano, através de um aplicativo que oferece um serviço semelhante ao táxi.
[3] Fransérgio Goulart foi consultor do programa da FASE no Rio de Janeiro durante a formulação da cartografia “Olhares dos jovens da Maré sobre Direito à Cidade e Injustiças Ambientais”.