30/11/2018 15:50
A Carta Política do IV Encontro Regional de Agroecologia da Amazônia (IV ERAA), evento que aconteceu no Pará entre os dias 5 a 9 de novembro, traz reflexões de participantes de nove estados da Amazônia brasileira. Mobilizados pelo tema “Por Territórios Livres e Soberania Popular na Amazônia”, cerca de 250 pessoas participaram do evento, entre indígenas, quilombolas, extrativistas, quebradeiras de coco babaçu, ribeirinhos (as), agricultores (as) familiares, artesãs e artesãos urbanos e, também, assessores (as), educadores (as) populares, estudantes, professores (as) e pesquisadores (as). As mulheres representaram 56% do público, tendo também uma presença marcante das juventudes.
As aconteceram atividades na capital Belém e no município de Abaetetuba (PA), incluindo cinco caravanas territoriais, oito seminários e duas mesas de debates. Os acúmulos foram registrados na Carta Política, que reflete sobre temas como: terra e território; sociobiodiversidade e soberania dos povos da Amazônia; comunicação e cultura; mulheres; construção do conhecimento agroecológico, assistência técnica e educação do campo; juventudes; construção social de mercados; e direito à cidade, soberania e segurança alimentar e nutricional.
O documento pontua ainda que o IV ERAA¹ ocorre em um momento que “a democracia passa por ameaças pela onda ultradireita que inundou o país”. Apesar do cenário de ameaças, destaca que o campo da agroecologia na Amazônia tem se fortalecido e seguirá resistindo aos retrocessos. O evento faz parte do processo do IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), realizado neste ano em Belo Horizonte (MG) pela Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
Caravanas: conhecimentos e resistências
Coletivo de Comunicação do IV ERAA²
O IV ERAA percorreu cinco rotas para conhecer experiências agroecológicas desenvolvidas em nove comunidades de sete municípios do Pará. “O que vejo aqui vou passar para a minha comunidade. Vou explicar para o cacique e vamos reunir com os outros para eu contar o que vi aqui”, disse o indígena Irá Capó, do Maranhão, que participou da rota “Sem reforma agrária, não há agroecologia”, que visitou os assentamentos Mártires de Abril e Abril Vermelho.
“Nosso território, nossas regras!” foi a rota que incluiu a Comunidade Agroextrativista do Pirocaba e os Quilombos Laranjituba e África, que surgiram a partir de inúmeras revoltas contra a escravidão colonial. De acordo com Evaristo Moraes de Oliveira, conhecido por todos como Vavá, seu povo possui uma capacidade ancestral de resistir e de se adaptar. Questionado se sua comunidade faz agroecologia, ele reponde com uma risada característica: “nós só fizemos agroecologia, dos nossos ancestrais aos dias de hoje”. Em Pirocaba, a história de lutas e resistência não é diferente. Ao descobrirem que corriam o risco de perder seu território para o grande capital, os moradores (as) buscaram na organização a força para impedir o avanço das multinacionais na região.
Ônibus, barca e barcos foram transportes utilizados por quem escolheu conhecer as comunidades da Ilha de Trambioca, na rota “Esse rio é minha rua!”. Os moradores (as) do local, em sua maioria pescadores (as), agricultores (as) e extrativistas, falaram dos impactos dos grandes projetos instalados na região, especialmente do setor minero metalúrgico. “Quando uma bacia de rejeito de uma empresa dessas deságua nos rios, que ficam no entorno da ilha, contamina a água que a gente usa, prejudica a agricultura, as plantas, a pesca e a saúde dos moradores”, explica João Batista Cardoso Viana, da comunidade do Arapajó.
“Agroecologia e Educação do Campo” foi a rota que levou ao Assentamento João Batista II, onde foi possível conhecer a experiência do Sistema Agroecológico de Produção Orgânica (SAPO) e o de educação do campo. Seu Sabá, liderança comunitária e uns dos que ajudaram a constituir o assentamento, relaciona o Sistema ao comportamento do animal. “O SAPO, assim como o animal, não anda para trás e nem abaixa a cabeça, sempre caminha para frente e visa o futuro”.
O Quilombo do Abacatal e o Iacitá Ponto de Cultura foram visitados na rota “Agricultura Urbana, unindo Campo e Cidade”. Nessas localidades, a luta não se encerrou com a conquista do território. Hoje em dia a região enfrenta a possibilidade de construção de um Linhão de Transmissão nas proximidades do quilombo.
“Se eles são pop, nós queremos ser brega”
Viviane Brochardt³
“A floresta em pé vale mais que campos de pastagem”. Com essa frase, dita por Chico Mendes, o representante do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS) Paulo Rocha homenageou o seringueiro e líder comunitário assassinado em 22 de novembro de 1988 por defender a floresta amazônica e os povos que nela habitam. Junto com Rocha, representantes de diversos movimentos sociais e de sindicatos de agricultores e agricultoras familiares avaliaram “Perda de Direitos e Retrocessos das Políticas Voltadas para a Agroecologia na Amazônia” durante o IV ERAA.
As lutas dos povos da Amazônia também foram discutidas pela representante dos quilombolas do Maranhão Ivanessa Ramos Mariano, que alertou para o risco de os povos tradicionais perderem suas terras e a soberania alimentar, resultante da apropriação do conhecimento e da biodiversidade locais por empresas e da modificação genética das sementes, ou sementes transgênicas, produzidas pelas multinacionais. Ivanessa denunciou ainda a prática dos fazendeiros, que instalam cercas elétricas em torno dos babaçuais visando impedir a livre circulação das quebradeiras de coco em busca dos babaçus. “Precisamos nos espelhar nas pessoas que estão na luta há muito tempo, na proteção da Amazônia e dos babaçuais. Também precisamos passar o nosso conhecimento para o maior número de pessoas, para que esse conhecimento não se perca”, explica.
O representante da Via Campesina Luciomar Monteiro Costa acredita que para fortalecer os povos da Amazônia é necessário traçar teias, construir redes que interliguem as populações que vivem na região. Luciomar falou das diversas formas de vivenciar a agroecologia no bioma amazônico, dos povos tradicionais que já habitam estas terras há milhares de anos aos migrantes que chegaram há apenas algumas décadas, mas estão buscando produzir alimentos limpos respeitando a biodiversidade local. “Também é importante ficarmos atentos a ações de igrejas que desvirtuam a nossa cultura, que querem substituir o ‘Deus da Amazônia’ por um outro Deus, que inibem a presença de pajés nas aldeias. A lógica dessas igrejas é a lógica do capital”, acredita Luciomar. Ele alerta também para a “biopirataria na região realizada por organizações estrangeiras”.
As declarações sobre a Amazônia, o meio ambiente e sobre os povos tradicionais, feitas pelo novo governo, que deve assumir o Executivo nacional a partir de 1° de janeiro do próximo ano, também foram discutidas no IV ERAA. Ângela, integrante da Federação dos (as) Trabalhadores (as) na Agricultura do Pará (Fetagri/PA), se diz preocupada com o que ela considera “uma grave situação que pode se instalar no país”, caso as propostas para o meio ambiente e para os territórios onde vivem os povos tradicionais sejam implantadas pelo presidente eleito. A fusão dos ministérios da Agricultura e do Meio Ambiente e a desapropriação de terras indígenas e quilombolas em favor de fazendeiros é parte dessas propostas.
A mesma preocupação é partilhada por Vanda Macuxi, indígena que habita o território Raposa Terra da Lua, em Roraima. “Fazendeiros e arrozeiros estão vibrando com a vitória deste candidato que vai assumir a Presidência, porque acreditam que vão tomar as nossas terras, mas não vão”, afirma. Vanda destaca políticas públicas e direitos da classe trabalhadora ameaçados desde o Golpe de 2016, e que podem ser extintos pelo novo presidente, como a aposentadoria, o Bolsa Família, a saúde e a educação – em todos os níveis – públicas e gratuitas, o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), entre outros.
Integrantes do chamado agronegócio declararam apoio ao candidato do PSL à Presidência e, uma vez eleito, sua base deve cobrar a fatura, paga com a perda de direitos e de territórios dos povos tradicionais. Esse é o medo de quem tem a terra como espaço de vida, de produção, de construção de identidade, de laços afetivos e familiares, de cultura e de reverência aos ancestrais. “Se eles são pop, nós queremos ser brega”, diz Bena Golçalves, agricultora familiar do Pará, evidenciando a oposição entre os projetos de nação existentes que apoiam o agronegócio e os que entendem ser a agroecologia uma forma de produção de alimentos e de reprodução da vida na Amazônia e nas demais regiões do Brasil.
[1] Texto editado a partir de conteúdos do site da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), da qual a FASE é parte. Acesse aqui a Carta Política.
[2] Aldimar Souza; José Barbosa; Micele Silva; Raphael Castro; Renata Garcia e Viviane Brochardt.
[3] Comunicadora da ANA.