Paula Schitine
27/06/2023 11:05
Quem percorre os bairros e distritos em torno da Refinaria Duque de Caxias (Reduc), na Baixada Fluminense, pode perceber com muita clareza a imponência dos tanques e quilômetros e quilômetros de dutos de petróleo, gás e derivados. Além do tráfego ininterrupto de caminhões de todos os tamanhos a qualquer hora do die a da noite. A poluição do ar e o cheiro forte são facilmente perceptíveis em pouco tempo de permanência no local. Esses são os impactos a olhos nus causados por uma das maiores refinarias de petróleo da América Latina, mas eles são muito mais devastadores quando se ouve as histórias que quem vive na região, testemunha e convive com essas violações crescentes desde a sua inauguração nos anos 1960. “É uma terra rica de um povo pobre”, resume Sebastião Braga membro do Fórum dos Atingidos pela Poluição da Bahia de Guanabara (FAPBG).
Durante quatro dias, 15 ativistas e pesquisadores, a convite da Campanha Nem um Poço a Mais, realizaram um intercâmbio de saberes por comunidades ao redor da Baía de Guanabara e acompanharam territórios impactados pela indústria petroleira. “São pessoas de situações e territórios diferentes que foram ver de perto não só os impactos, porque isso a gente vem refletindo há décadas, todo mundo sabe que contamina, que é cancerígeno, que contamina o meio ambiente, todo mundo sabe do desastre. A questão é, como estamos conseguindo resistir e pensarmos a resistência porque ela ainda enfrenta um cenário bolsonarista nos territórios”, justifica o coordenador da FASE-ES, Marcelo Calazans. “São pessoas perseguidas, ameaçadas de morte e é dentro desse contexto que a resistência tem se construído. Não é numa normatividade jurídica. Então aqui tem pessoas que vêm de muita resistência em seus devidos territórios e o mais importante não é pensar os impactos hoje o mais importante é pensar a resistência”, reforça.
A contaminação por benzeno
A Reduc ocupa uma área de 10 km2, uma área maior do que a de Copacabana, São dois quilômetros de largura por cinco de comprimento, situada no distrito de Duque de Caxias, Campos Elíseos, com uma população de aproximadamente 40 mil habitantes. O complexo industrial da refinaria é distribuído numa área de aproximadamente 13 km² e é responsável por cerca de 4,8 bilhões de reais por ano em impostos pagos ao governo. Um total de 55 produtos são comercializados pela refinaria, dentre estes óleos básicos para lubrificantes, diesel, gasolina, GLP, nafta, querosene de aviação, parafinas, óleo combustível e aguarrás. No entorno da Reduc cerca de 300 empresas estão em atividade prozudino desde plástico até envasamento de gás. O resultado de toda essa produção e exploração do território é doença e desigualdade.
Segundo Sebastião dos Santos Raulino, professor que realizou tese de doutorado sobre os efeitos da indústria petroleira em Campos Elísios e uma das conclusões é que as pessoas sofrem de todos os lados, com o adoecimento por problemas respiratórios, cardiovascular, câncer. “Ao mesmo tempo há uma naturalização do convívio com as empresas e a maioria não é contratado da Reduc, mas todos sofrem com problemas de saúde”, denuncia. Ele conta que mesmo tendo havido um alerta da ONU na década de 1190, com investigações de matérias primas utilizadas e produtos, depois da mudança de governo essa inciativa se perdeu. “Então, hoje a organização em termos de enfrentamento é precária. As pessoas sofrem na saúde, não tem acesso à educação de qualidade, não tem escola de ensino médio em Campos Elísios, só em bairro vizinho, tem um posto de saúde que está sempre cheio, falta estudo epidemiológico desde o início, faltam vários estudos na saúde”, denuncia. “Além disso, aqui se produz combustível, mas o transporte é caríssimo. A população gasta em média R$15,0 para ir ao centro de Caxias”, exemplifica.
Bianca Dieile Silva, pesquisadora do Departamento de Saneamento e Saúde Ambiental da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz acompanhou o girou no entorno da Reduc e conta que a Fiocruz já acompanha a população no território de Campos Elísios, por conta mesmo das questões vinculadas à saúde. “A gente tentou manter um monitoramento dessa população e como é o reconhecimento desse impacto na saúde nas pessoas junto à refinaria. Então, a gente faz esse trabalho de assessoria a essas comunidades, já foi feito um estudo sobre a qualidade da água e estamos pleiteando voltar com esse trabalho”, afirma a pesquisadora.
Em 2007, outra pesquisadora da mesma Escola, Cristiane Barata Silva, realizou um estudo como tese final de pós-graduação intitulado: “Avaliação da exposição ambiental ao benzeno em moradores da área sob influência do Polo Industrial na região de Campos Elíseos, Baixada Fluminense”. As conclusões foram alarmantes. Segundo o documento, “o uso indiscriminado de um número cada vez maior de substâncias químicas vem aumentando e a contaminação ambiental associada tem trazido sérias consequências para a Saúde Pública.
Uma das substâncias mais importantes neste contexto devido à sua grande utilização, à contaminação ambiental resultante de sua emissão e aos efeitos sobre a saúde humana é o benzeno, classificado pelo IARC como reconhecidamente carcinogênico para humanos (grupo 1) e associado ao desenvolvimento de leucemias”, diz o estudo. “Ao comparar as taxas de leucemia de 19 municípios do Estado do Rio de Janeiro, observou-se que Duque de Caxias apresentou uma das taxas mais elevadas (5,3), sugerindo a exposição da população residente naquele distrito. Avaliações hematológicas compatíveis com a contaminação por benzeno foram observadas em 33% dos 190 voluntários participantes neste estudo” (leia aqui o estudo completo).
Sebastião Braga, que é também morador do bairro e integrante do Fórum dos Atingidos pela Poluição da Baía de Guanabara (FAPBG) mostrou para a equipe do intercâmbio alguns pontos críticos de poluição da água e do ar. Ele conta que o índice de contaminação da água é tão alto e a companhia de saneamento privada Águas do Rio não abastece a região. O resultado se traduz na saúde. “Do outro lado, ainda tem alguns canos que saem água e as pessoas armazenam como podem, mas têm muito cloro. Quase todas as casas têm poços artesanais construídos de forma privada e sem nenhum tipo de segurança”, afirma.
O morador lembra que Duque de Caxias é o segundo maior município em arrecadação do Rio de Janeiro. “Mas eu não sei para onde vai esse dinheiro, onde ele é investido porque não é na saúde, educação, transporte. Esse recurso não volta para a população”, denuncia. Outra grave violação é do meio ambiente local. “Campos Elísios é uma grande área de mangue, mas as áreas verdes estão sumindo e os manguezais completamente poluídos”, acrescenta Sebastião Braga.
Outro território, o mesmo olhar
Duas ativistas do sul do Espírito Santo participaram do intercâmbio para observar os impactos dessas violações de direitos humanos e do meio ambiente para seu território. Outra denúncia é a falta de planejamento que resultou numa favelização do município com casas construídas em cima de dutos e roubos de gasolina com perfurações que aumentam ainda mais os danos à população do município. Segundo Agatha Benks ativista LGBTQIAP+ do Instituto Fepnes, a luta deste território é semelhante. “A gente está na nossa região fazendo essas lutas, essas incidências políticas, acerca da Campanha Nem um Poço a Mais sempre juntos mobilizando as pessoas sobre a importância de dialogar e denunciar porque não há necessidade de mais construções como esta. O Brasil é tão rico de várias outras formas sustentáveis de energia”, lembra. “E a população mais em risco de violações de direitos humanos que é o que eu defendo é o povo preto que está morrendo e sofrendo essas violações, um povo que já vem de uma segregação então quando essas refinarias se instalam elas trazem o caos social”, reforça.
Graduada em Ciências Ambientais pela Unirio e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Geografia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, ex-moradora de Caxias, Pammela Casimiro cresceu em Campos Elísios e também participou do intercâmbio. Ela lembra que quando era mais nova, avistar o complexo da refinaria era mágico porque era uma “cidade que dormia de dia e acordava de noite”. Com o passar do tempo, descobriu que não eram prédios habitados por pessoas, e com isso a relação com o bairro foi mudando.
“Eu falava, eu quero trabalhar na Reduc. E esse era um sonho compartilhado com muitos jovens. Porque as pessoas que trabalhavam lá tinham maior poder aquisitivo, maior influência e maior autoestima. Então, a gente também queria isso”, lembra. “Eu queria ser uma aprendiz legal, mas esse sonho não se concretizou porque ela nunca foi aprovada nos processos seletivos”, conta. Hoje, sua pesquisa de mestrado é sobre racismo ambiental no território. “Eu passei a ter mais afeto com o bairro porque quando a gente vive num lugar que é marginalizado muitas vezes não desenvolve afeto, mas uma relação de sobrevivência. E também transformei a relação com a refinaria em pesquisa sobre racismo ambiental nas minhas ‘escrevivências’”, orgulha-se. “A gente vê a questão do ar e o meio ambiente afeitam mais os corpos de pessoas pretas”, conclui.
Durante os quatro dias de intercâmbio, o grupo ainda realizou um percurso de barco pela Baía de Guanabara para reconhecer os efeitos da indústria petroleira nas águas e modos de vida dos pescadores. Também visitou o antigo Aterro Sanitário de Jardim Gramacho, desativado em 2012 que causou frustração e miséria a centenas de pessoas. E finalmente, conheceu o Assentamento Terra Prometida em Xerém, onde camponeses do MST produzem alimentos da agroecologia.
*Jornalista da comunicação da FASE