06/09/2017 10:50

Marcha contra violência na Maré (RJ). (Foto: Rosilene Miliotti/RJ)

Vivemos em tempos difíceis. E esses tempos têm demandado maior atenção da sociedade civil, movimentos sociais, organizações e coletivos para compreender como as violações de direitos estão crescendo de maneira absurda, e sempre contra aqueles que estão nos territórios e em situações vulneráveis. O que grita aos nossos olhos é a violência urbana, e essa no Rio de Janeiro aparece como um dos principais problemas. De ciclos em ciclos, a cidade e seus moradores passam por novas apostas de gestão da segurança pública, que possuem sempre o mesmo objetivo: o combate ao crime organizado e ao tráfico de drogas. 

Foi assim durante os anos 1990, conhecido como “era das chacinas”; continuou, nos anos 2000, com o programa de Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que utilizou como justificativa de atuação o “resgate dos territórios” dominados pelo tráfico. Com a falência dessa iniciativa, vemos terminar mais uma aposta do poder público que reforça a prática do enfrentamento bélico, e, assim como em outros momentos, gera resultados ineficazes.  
 
E o que temos agora? Um terreno fértil para o surgimento de práticas cada vez mais antidemocráticas. Há uma forte relação entre a crise financeira dos estados, a precarização dos serviços públicos básicos, o aumento da sensação de insegurança e a legitimação pública da gigantesca investida em militarização. Num momento de instabilidade política e financeira, onde o custo de vida se torna alto, o número de roubos de carga e de assaltos aumenta, a quantidade de pessoas em situação de rua e de trabalhadores ambulantes cresce, a precarização dos serviços públicos e a retirada de direitos atingem os segmentos mais pauperizados, é que o uso da força bélica, com práticas e equipamentos oriundos das forças armadas, tem sido acionado inúmeras vezes para aplacar os anseios, medos e problemas da sociedade.
 

Marcas de tiros em Maguinhos. (Foto: Patrick Granja/Jornal A Nova Democracia)

A prova mais cabal desse argumento foi o verdadeiro genocídio que os agentes estatais da segurança pública realizaram contra a população da favela do Jacarezinho, na zona norte da capital fluminense, entre os dias 11 e 22 de agosto de 2017.  O episódio resultou em sete mortes e centenas de prejuízos. A onda gigantesca de militarização faz uso de caveirões aéreos, drones e bombas de gás, dentre outros equipamentos e armas; autoriza os gestores a acionarem instrumentos de excepcionalidade como a Lei de Garantia da Ordem (GLO), que permite convocar as forças armadas, com seus tanques de guerra, para atuarem na suposta “guerra ao tráfico” nas favelas.

Os resultados dessa “segurança pública” são tiroteios a qualquer hora do dia; fechamento de escolas, interdição de vias, revistas e constrangimentos marcados por abuso de autoridade; alteração da rotina de centenas de pessoas que, com essas práticas de exceção, perdem o direito de circular, trabalhar, de viver. Recentemente, os moradores do Jacarezinho foram obrigados a passar por tudo isso. A gravidade desses fatos é ainda mais assustadora quando percebemos que todas essas práticas estão sendo referendadas por ideias que atingem graus de conservadorismo inimagináveis, como a de que o Rio de Janeiro está vivendo uma guerra.  Quando a ideia de guerra é utilizada por agentes do Estado, meios de comunicação e também pela própria população como o melhor discurso para compreender e enfrentar a violência urbana, hierarquizam-se socialmente vidas e mortes. 

Forças Armadas em operação em oito favelas, com ênfase no Jacarezinho (Foto: Vladimir Platonow/ABr)

A mídia corporativa quer fazer acreditar que as mortes de 101 policiais são mais significativas do que as mortes de 480 pessoas em ações policiais ocorridas até junho de 2017. Esses números não incluem as sete pessoas assassinadas no Jacarezinho, crimes ocorridos em decorrência de uma megaoperação que teve como justificativa o propósito de encontrar o responsável pela morte de um policial civil, e que mais pareceu uma ação de vingança contra toda a população. A vingança é uma das ações que instantaneamente transformam todos os moradores de favelas em “vagabundos”, “sementes do mal” e “vidas matáveis”.

Legitimar um estado em guerra é permitir que todo o tipo de ação genocida seja praticada e naturalizada sob a justificativa da necessidade de enfrentar os indivíduos responsáveis pelo mal que atinge as cidades. Quanto mais falamos de guerra, menos encontramos soluções que se afastem da produção de assassinatos que banalizam a vida. Há um modo de atuação consolidado, e a nossa capacidade de ver e denunciar a sua ampliação com mais armas e tecnologias não está fazendo frente à grandiosidade do problema que enfrentamos.
 
No dia em que as regiões de Manguinhos, Jacarezinho e redondezas amanheceram com tropas da força nacional em seus territórios, incrementando ainda mais as práticas de coerção e humilhação, Ana Paula Oliveira, uma das mães de Manguinhos¹, disse a seguinte frase: “Deixem que nós pedimos paz! Vocês, privilegiados, clamem por nossas vidas. Por que toda vez que vocês gritam por paz, nosso massacre aumenta.”

Ana Paula Oliveira, uma das Mães de Manguinhos. (Foto: Tânia Rêgo/ABr)

Lutamos por um modelo democrático de sociedade que, se nunca foi totalmente efetivado, hoje está desmoronando completamente. E a ideia de guerra traz como premissa que são os que vivem nos territórios mais precarizados, onde a falência desse sistema democrático se faz sentir com mais força, que devem ser tratados como os inimigos internos.

Como dissemos no início, vivemos em tempos difíceis. Tempos em que a disputa de argumentos ganha centralidade, na medida em que se transforma em “licença para matar” ou em resistência pela vida e pela garantia dos direitos. Nós, da FASE, acreditamos que a luta se faz no apoio e atuação com grupos que se encontram na linha de frente, mas também na denúncia e na publicização de análises que possam travar disputas com o discurso conservador que legitima a barbárie. E, por isso, fazemos questão de reafirmar: não estamos em guerra! Estamos vivendo a face mais brutal de um modelo de desenvolvimento que impõe práticas de exceção sobre a parcela mais vulnerável da população. E contra isso não abriremos mão de lutar.

 
[1] Em Manguinhos, assim como em outras favelas, mães de filhos e filhas que foram assassinados por agentes do Estado se organizam e lutam por justiça.