Edição: Paula Schitine
29/02/2024 15:38
O coordenador da FASE Rio, Aercio Barbosa de Oliveira (ABO) concedeu entrevista à jornalista, Martina Medina (MM), para o site Um Só Planeta, para a matéria intitulada: “Rio tem até tecnologia da Nasa para evitar enchentes, mas por que desastres continuam acontecendo?”, publicada no dia 15 de fevereiro de 2024.
Leia a entrevista na íntegra:
MM: A prefeitura do Rio e o estado do Rio, procurados pela reportagem, afirmam que executam medidas preventivas, incluindo drenagem, desassoreamento de rios, limpeza das caixas de ralo, contenção de encostas, construção de piscinões, podas de vegetação, urbanização de favelas, monitoramento meteorológico, identificação de áreas de risco e instalação de sistemas de alertas, além de campanhas educativas e capacitação de técnicos e da população em simulados de emergência. Também são citadas ações de mitigação, como construção de pontos de apoio e abrigos. Como você avalia essas ações? O que há de positivo e o que há de alerta e seria preciso corrigir em relação a elas?
ABO: Todas as medidas para atenuar os impactos desses eventos climáticos extremos, no caso, em várias cidades da região metropolitana, são valiosas e positivas. No entanto, precisamos explicitar que elas são extremamente limitadas. Não estamos falando mais de um regime de chuvas, como as das décadas do século XX. Atualmente, o intervalo entre chuvas torrenciais com mais de 150 mm, durante horas, tem sido menor; ao mesmo tempo, o sistema de drenagem das cidades fica cada vez mais deficiente; o aumento do nível de permeabilização do solo, com mais asfalto, mais edificações. Muitos rios, como os da Baixada Fluminense, sofrem com o assoreamento. Será preciso a realocação de famílias para áreas mais seguras, com uma
nova moradia em local seguro, ou melhorar a estrutura das casas vulneráveis a esses eventos. Deve-se evitar a realocação ao máximo.
MM: Por que, apesar dessas ações, presenciamos mais uma tragédia no Rio? Quais foram as principais causas das mortes e enchentes que atingiram o Rio este mês?
ABO: Há uma combinação de causas. Mas destaco duas: uma é o volume de chuva que cai num período de tempo tão curto. Nos últimos anos o aumento do volume das chuvas aumentou assustadoramente. O intervalo das ocorrências de chuvas tem sido cada vez menor. O outro, é a estrutura de drenagem em diferentes escalas – micro, meso e macrodrenagem. Esse é um problema seríssimo. Quando se fala de saneamento, é dado destaque ao tratamento de esgoto, a destinação adequada do lixo, abastecimento de água. Pouco se fala da drenagem. A microdrenagem, por exemplo, é de responsabilidade da prefeitura. Uma cidade como a do Rio teria recursos para investir em drenagem, mas a maioria das cidades da região metropolitana não tem dinheiro suficiente e, muitas vezes, falta pessoal técnico qualificado nas prefeituras para elaborar um projeto. São obras caras, que deveriam ser combinadas a medidas de preservação e ampliação da permeabilidade do solo, como a criação de cinturões verdes, oferecer meios que incentive a agricultura urbana. Desassorear os rios é algo que exige equipamento pesado, um transporte e destinação adequada daquilo que se retira da calha dos rios. Além disso, em muitas situações, é preciso realocar famílias que vivem na margem dos rios. Um bom trabalho de drenagem reduziria bastante os danos dessa última chuva na região metropolitana do Rio. Há casos, como em Belford Roxo e Duque de Caxias, que precisaria criar, o que tecnicamente se chama áreas de polderes, um sistema hidráulico composto por diques, reservatórios, dutos e bombas. Essas áreas são vitais para reter as águas que transbordam dos rios e evitar que entre nas casas. Devo lembrar que de 2007 e 2012, a FASE participou do trabalho técnico socioambiental de um projeto de contenção de enchentes naquela região. Eram recursos do PAC do governo federal, coordenado pelo governo do estado, para desassorear os rios e criar uma estrutura para reduzir as enchentes na região. Por causa desse projeto se implantou um sistema de polder em umas das áreas de Belford Roxo, com sistema de bombeamento. Durante bons anos, o projeto reduziu as enchentes na região. No entanto, o projeto não teve a manutenção necessária e não foi dada continuidade. Tudo isso, se tivesse sendo feito, dado continuidade, os estragos seriam bem menores.
MM: O que o poder público precisa fazer para se preparar para a temporada de chuvas e evitar de forma consistente e efetiva grandes tragédias? Que tipo de soluções e ações de curto prazo podem ser tomadas para reduzir danos e mortes? E no médio-longo prazo, o que é preciso fazer?
ABO: As pessoas precisam de um bom sistema de informação emitido pelo poder público e pelos especialistas. Deveria se ter um programa sério, em considerável escala, que constituísse equipes nos bairros populares e mesmo em bairros com infraestrutura, preparadas para ajudar o Poder Público antes e depois das chuvas torrenciais. Ter áreas públicas estruturadas para abrigar as pessoas que perderam tudo. A curto e médio prazo é preciso envolver os diferentes segmentos sociais –universidade que pesquisam o tema e elaboram soluções de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, organizações e movimentos sociais, organizações da sociedade civil, para pensarem e agirem com o conhecimento que cada segmento tem. Isso
não pode ser confundido com a desresponzabilização do poder público. Nada disso, ao contrário, se precisa muito de políticas públicas, de recursos públicos.
No longo prazo, parte já respondi nas perguntas anteriores, destacaria a necessidade de se ter medidas consistentes de reparação para cobrir o prejuízo das famílias. Conheço casos em que mal a pessoa conseguiu terminar de pagar a geladeira, a cama, o armário e já perdeu para as chuvas. Quem cobre esse prejuízo? O Estado tem que ter um sistema que pague esse prejuízo. Todo o passivo ambiental, o déficit de moradia é de responsabilidade do poder público. Ninguém vai morar numa área com alta declividade ou na margem de um rio, por que quer viver aventuras. É pela falta de alternativa que o Estado deveria dar. A questão central é que tudo isso precisa de muito dinheiro. No governo do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, o governador opta por gastar quase 20% do orçamento estadual com segurança pública e não tem dinheiro para enfrentar os efeitos dos eventos climáticos extremos. Não tem quase nada para moradia, não passa de 5%. Para macrodrenagem e tudo que é preciso para enfrentar a mudança climática é quase zero. Nas prefeituras também não é diferente. Drenagem, por exemplo, não está entre as prioridades. Basta a gente ver o que muitas prefeituras fizeram com o dinheiro que receberam da outorga da concessão da CEDAE para empresas privadas operarem os serviços de abastecimento de água e tratamento de esgoto: se a gente checar identificaremos que não se gastou nada ou quase nada. Temos pavimentação de rua que não deve passar deste verão. Obras ruins com fins eleitoreiros, que não altera a situação de vulnerabilidade às chuvas torrenciais.
MM:A cidade do Rio tem tecnologias interessantes, incluindo uma parceria com a Nasa, como no caso do LHASA Rio, que avalia perigos de deslizamentos. No ano passado, começou a ser testado um novo modelo, o Rio Flood Model, uma ferramenta de previsão de enchentes na cidade. Essas tecnologias fizeram com que a cidade se destacasse, pela quarta vez, em 2023,como referência em gestão ambiental, ganhando nota A do Carbon Disclosure Project (CDP), organização inglesa sem fins lucrativos. As câmeras de monitoramento saltaram de 600 em 2021 para mais de 3 mil este ano e o Rio possui dois radares meteorológicos próprios. No estado do Rio, foram destinados R$1 bilhão para novas tecnologias, incluindo sonares de última geração, capazes de buscas subaquáticas em caso de inundações, além de ferramentas desencarceradoras para cortar estruturas metálicas. Qual a importância desses projetos, eles já ajudaram efetivamente a evitar desastres no Rio?
ABO: Obviamente que essas tecnologias podem ajudar e são importantes. Mas no caso do Rio, parece haver uma inversão equivocada de prioridade. Pouco adianta tanta tecnologia se não há estrutura para conter os estragos que a chuva poderá causar. Por isso, precisamos pensar em enfrentar os problemas globalmente, com toda a sua complexidade. E como sempre, infelizmente, faz parte da nossa tradição de colonizados, inclusive cognitivamente, pegar tudo que vem de fora, sem uma avaliação criteriosa. Cada compra dessa precisa ser muito bem avaliada, por mais que um desses equipamentos sejam importantes. Muita coisa é gasta depois do desastre, e muito pouco para preveni-lo. É a velha discussão na saúde: gasta-se mais
com hospital, com remédios, equipamentos e pouco, comparativamente, com medidas de prevenção. Por exemplo, com agentes de saúde, médicos de família, etc.
MM: As Soluções Baseadas na Natureza, como os jardins de chuva, são importantes no contexto do Rio? Pode citar exemplos e como podem ser aplicados?
ABO: As cidades da Baixada Fluminense, que fazem parte da região metropolitana, é uma região cortada por rios. Lá é extremamente importante criar jardins de chuvas, parques e outros meios. Inclusive, hoje, temos projetos que não são caros elaborados por universidades. Um caso exemplar é o que foi elaborado pelo Laboratório de Estudos de Águas Urbanas, da UFRJ, com a participação popular, de moradores de um bairro de Duque de Caxias. O projeto é a criação do Parque Quilombo do Bomba. Esse projeto se efetivado reduzirá significativamente os efeitos das chuvas, numa região que sofre todos os anos com enchentes. Além de parques, áreas de polder, pode-se adotar medidas que estimulem a implantação de plantio de matas ciliares nas margens dos rios, de agricultura urbana, e por aí vai. Existem mais de centenas de soluções baseadas na natureza baratas que não se enquadram na lógica mercadológica.
MM: Qual a importância da adequação de leis de uso e ocupação do solo e de mudanças climáticas, de modo a evitar desastres na temporada de chuvas? Esses documentos existem nos locais afetados pelas enchentes de janeiro? Se sim, o que falta para que sejam efetivos?
ABO: Disposição política e recursos dirigidos para essa agenda. Temos leis maravilhosas e algumas que precisam ser atualizadas. Digo que somos um país afogados em leis. A questão é que parte delas precisa de dinheiro para ser efetivadas e de fiscalização. Muitos loteamentos na Baixada
Fluminense, onde teve o maior número de óbitos nas chuvas de 13 e 14 de janeiro, que são documentalmente regularizados, não poderiam ser permitidos para uso residencial. Temos uma lei de Parcelamento do Solo Urbano (Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979). Esta lei foi produzida bem antes de se falar com tanta ênfase em mudanças climáticas e de seus efeitos entrar na ordem de preocupação da sociedade brasileira. A lei prevê que não será permitido o parcelamento do solo em terrenos alagadiços e sujeitos a inundações, “antes de tomadas as providências para assegurar o escoamento das águas” nem em áreas de preservação ecológica ou “naquelas onde a poluição impeça condições sanitárias suportáveis,
até a sua correção”. E aí, ela foi pouco respeitada ou ignorada. Ainda temos grupos paraestatais, com a anuência de setores do poder público, negociando terrenos ilegais para moradia em áreas sujeitas a enchentes. Para ampliar a nossa tragédia que legaliza os riscos, em 2021 ela e o Código Florestal sofreram significativas alterações, como a advinda da lei federal n° 14.285, de 29 de dezembro de 2021, que transfere para os municípios e estados a determinação dos limites das Áreas de Preservação Permanente (APPs) marginais de qualquer curso d’água natural em área urbana. Nas legislações que a lei modificou, os limites permanentes eram de 15 metros. Portanto, são questões que só agravam os efeitos dos eventos climáticos extremos.
MM:No caso da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, a água que todos os anos inunda municípios como Belford Roxo e São João de Meriti resulta das precipitações em Nova Iguaçu, Nilópoles, Mesquita e até em Bangu, na zona norte do Rio de Janeiro. Qual a importância de ações que reúnam os municípios que compartilham bacias hidrográficas? Existem ações nesse sentido? O que falta para que ações conjuntas sejam colocadas em prática?
ABO: Os espaços de participação, como conselhos setoriais, e ações municipais consorciadas perderam força nas últimas décadas. Cresce a lógica de cada um por si. O que é péssimo. Só encontraremos soluções de maneira integrada, compartilhando responsabilidades, numa combinação de quem mora no bairro com o conhecimento técnico e a prefeitura. O Estado do Rio tem uma Câmara Metropolitana, além de ela ser subrepresentada, creio que questões de como enfrentar as mudanças climáticas não está na ordem de prioridade. Infelizmente, como quase sempre, é a sociedade civil, quem senti diretamente os estragos, que precisa pressionar para alterar um futuro que hoje é desalentador para quem vive em bairros populares e favelas.
Esses eventos climáticos, com resultados trágicos, me lembra a seguinte história: no início da metade do século XIX, o parlamento Inglês, instalado na beira do rio Tâmisa, teve suas sessões interrompidas pelo fedor provocado pelo despejo no rio do esgoto sem tratamento no rio. A partir disso os parlamentares tomaram medidas legislativas e orçamentárias para que se implantasse um sistema de captação e tratamento do esgoto. No nosso caso, como nossos legisladores, governadores e prefeitos vivem longe das cheias será preciso muito mobilização social, do estado do Rio de Janeiro, para que se implemente políticas públicas, se faça obras estruturais, se implante tecnologias sociais, se faça um trabalho regular de educação socioambiental e se adote tantas outras medidas consistentes para adaptar nossas cidades a um clima, com um regime de chuvas e estiagens, radicalmente diferente do que foi no século passado.
*comunicadora da FASE