Claudio Nogueira
20/03/2024 11:10
A cidade não para, a cidade só cresce, como dizia Chico Science. Junto com ela, os desafios para garantia de direitos nas favelas e periferias das metrópoles também só aumentam. Reunidos na terra do poeta pernambucano de seis a oito de fevereiro, representantes de sete unidades dialogaram sobre atividades relacionadas ao Direito à Cidade e formas de garantir mais visibilidade para a Causa 1 da FASE. “Esse intercâmbio é uma boa oportunidade para a gente aprofundar algumas inquietações que temos quando atuamos há tanto tempo na FASE com as questões do direito à cidade, com desafios muito grandes e profundos”, comemora Luiza Melo, coordenadora da FASE Pernambuco.
Colegas do Recife receberam educadoras e educadores da Amazônia, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Fundo SAAP e Comunicação. Junto com o diretor Evanildo Barbosa, foi feita uma grande escuta do trabalho nos diferentes territórios, garantida através da leitura prévia de relatórios e a apresentação in loco do trabalho das diferentes unidades. Foi destacado como ponto comum o tema Clima e Cidade, com enfrentamento da perda de direitos e dos problemas criados ou agravados pela emergência climática nas áreas urbanas. Este deve ser o tema que vai ganhar mais nitidez nas atividades e projetos ligados à Causa 1. Questões como violência, agricultura e pesca urbana também foram abordadas na dinâmica.
Trocando experiências
A FASE Amazônia reiterou a vontade de retomar o trabalho na área urbana e o debate sobre as cidades amazônicas, inclusive com vistas à realização da COP30, a Conferência das Partes da ONU, que acontece em 2025 em Belém do Pará. Lembrou, ainda, a atuação direta na garantia dos direitos à moradia e à consulta prévia, livre e informada aos territórios tradicionais, através de ações de denúncia e incidência política junto à Defensoria e Ministérios Públicos. Também foram destacadas as mobilizações e denúncias, como a feita em torno da construção de portos graneleiros no Lago do Maicá, em Santarém. A produção do Jornal Aldeia, de programas de rádios e narrativas audiovisuais, principalmente por lideranças da juventude, também foram pontos positivos.
A anfitriã FASE Pernambuco reforçou sua atuação nas questões das mudanças climáticas, de moradia, de agricultura urbana e de fortalecimento de lideranças de mulheres. A unidade tem presença ativa e marcante nas campanhas do Levante Feminista e do Despejo Zero; nas articulações Recife de Luta e Agroecologia e Agricultura Urbana; e entre as pescadoras e pescadores artesanais de Recife e Olinda. Já o Fundo SAAP reiterou sua vocação para a capacitação e formação de sujeitos e pequenas organizações. Tais grupos são formados predominantemente por mulheres em busca de autonomia política e econômica, principalmente nas favelas e regiões periurbanas.
A FASE Rio lembrou a atuação na garantia dos direitos de moradia e saneamento, nas denúncias da falta de políticas públicas para evitar a tragédia das grandes enchentes, além do combate às violências de gênero e policial nas favelas. Foram destacadas as ações de implantação de sistemas de captação de água da chuva na Baixada Fluminense, de apoio a ocupações urbanas nas regiões do Centro e Zona Norte da capital, além da produção de conhecimento através da edição de variadas publicações e redação de artigos para o site da FASE. No Espírito Santo, a unidade regional possui evidente potencial para o trabalho direcionado ao Direito à Cidade, seja pela presença e redes de aliados atuantes na capital Vitória, seja pela liderança e diálogo bem desenvolvido com a agroecologia urbana, através da RUCA – Rede Urbana Capixaba da Agroecologia.
IIha de Deus ao deus-dará
Os educadores da FASE também aproveitaram o intercâmbio para visitar o território ribeirinho da Ilha de Deus, que sofre com as pressões do mercado imobiliário e resiste na utilização dos rios para tirar seu sustento, se deslocar e ocupar suas margens. A Ilha de Deus é uma comunidade tradicional pesqueira, com 80% de sua população vivendo especificamente da pesca artesanal e 20% tendo esta atividade como secundária. A vivência contou com a parceria da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, que atua diretamente na região, a partir de uma rádio comunitária, vídeos, iconografia e outros instrumentos de comunicação popular.
“A comunidade está sofrendo hoje com o assédio do empreendedorismo imobiliário. A Bacia do Pina é especulada para caramba, corre altos riscos, são questões óbvias do racismo ambiental e estrutural que essa cidade está sofrendo”, alerta Edson Fly, do coletivo Caranguejo Uçá, sobre os impactos socioambientais em áreas pobres da capital. “As ameaças estão aí, como a repressão ao ambiente de pesca que temos, e o novo porto que querem construir. O ativismo por direitos humanos, por direito à cidade, são pautas nossas, de todos nós”.
A visita também contou com representantes da coletiva Cabras, grupo de mulheres da comunidade do Bode, também da Bacia do Pina, que sofre o impacto ambiental das medidas da Prefeitura de desocupação das margens do rio.
“A gente vive em constante ameaça. Como comunidade pesqueira centenária, é muito doloroso ver aquele cemitério de memórias… a Prefeitura do Recife há muito tempo quer apagar o território, que fica entre Boa Viagem e o Centro da cidade. Já não resta muita coisa”, desabafa Ana Minete, porta-voz da coletiva. “São mães, pescadoras, que não conseguem sobreviver dentro de um habitacional que não atende às necessidades dessa galera, porque não tem como se trabalhar. Hoje vocês conseguiram navegar. Até semana passada eram entulhos maiores, que impediam os pescadores de fazer sua pesca”.
Para o pescador Elington Teixeira, o Garotinho, a falta de políticas públicas e o descaso tornam a vida dele e de seus vizinhos descartáveis: “Quantas comunidades vivem desse rio? Bode, Ilha de Deus, Brasília Teimosa, Coque, Vila São Miguel, Vila Tamandaré, Ponte Limoeiro, todos esses territórios dependem desse rio e desse mangue. Mas os governantes, junto com os empresários, os donos do nosso Recife, não cuidam do nosso rio, não cuidam do povo que vive no rio. A economia da gente na mão deles é descartada”. Garotinho comenta sobre o tempo em que retirava peixe e mariscos em abundância para seu sustento, e logo em seguida lamenta mais uma vez a situação precária do local, fazendo uma analogia tão poética quanto trágica. “É a única empresa que não descarta a gente, o único canto que garante o nosso sustento. Passei quatro anos trabalhando de carteira assinada, quando saí do trabalho voltei pra dentro do rio. Eu e meus amigos que vieram da pesca preferimos ser escravos do rio do que ser escravos desses miseráveis (aponta para os arranha-céus) isso aí é um atraso de vida.”
Planejamento para unificar ações
André Araripe, da FASE Pernambuco, fez uma apresentação detalhada sobre como acessar os dados sobre recursos orçamentários e investimentos nas políticas urbanas a partir do PPA (Plano Plurianual), dando visibilidade para a reconstrução das políticas públicas no ambiente das cidades. A apresentação deve ser transformada em uma nota técnica da FASE. Em seguida, foi a vez da consultora Daiane Dultra apresentar um mapeamento sobre possíveis financiamentos de projetos ligados à Causa 1.
Os educadores levantaram a necessidade de produção de portfólios de cada unidade sobre as ações e projetos voltados para o Direito à Cidade. O objetivo é reunir dados e depoimentos que contextualizam as ações envolvendo a garantia de direitos nas áreas urbana e periurbana, que tenham promovido histórias de mudança e transformação direta nos territórios de atuação da FASE, com monitoramento dos indicadores atuais. Também foi proposto um calendário de atividades da Causa 1 para o ano de 2024, com espaço para debates sobre o financiamento das atividades, um ciclo de formação sobre Clima e Cidade, e diálogos visando a realização da COP 30 em Belém, entre outras ações.
*Coordenador de Comunicação da FASE