15/02/2023 09:00

*Paula Schitine

A soja produzida é escoada pelo porto que destruiu uma praia em cima de um sítio arqueológico, em Santarém, no Pará. Foto: Paula Schitine

É nas margens do Rio Tapajós que a Cargill está instalada em Santarém, no Oeste do Pará. A companhia opera um terminal portuário em Santarém, no Pará, há quase 20 anos, impactando fortemente as comunidades tradicionais da região. Comunidades que foram ouvidas durante uma visita aos territórios afetados por representantes da Frente Brasileira contra o Acordo UE-Mercosul. O Acordo que está pronto para ser assinado pode causar ainda mais estragos à região e, por isso, as populações tiveram mais informações para pressionar os governos dos dois blocos a pararem este Acordo.

 

Um dos grandes impactos apontados pelos povos da região em relação à instalação da Cargill tem relação direta com a expansão do agronegócio. Com a chegada da empresa e o estímulo à produção de soja, as comunidades – principalmente do Planalto Santareno, entre os municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos – começaram a sentir os efeitos da aplicação de agrotóxicos nas plantações, que estão cada vez mais próximas à área urbana e a equipamentos como escolas, postos de saúde e hospitais.

Representantes da Frente Brasileira contra o Acordo UE-Mercosul protestam em porto da Cargill. Foto: Paula Schitine

“Caso o acordo seja aprovado corre o risco de a gente ver crescer ainda mais a produção de soja e milho nessas regiões do Pará”, alertou a coordenadora da FASE e representante da Frente, Maureen Santos, durante rodas de conversas com agricultores e agricultoras de comunidades da região.

 

Alteração nos modos de vida

Uma das principais problemas atrelado ao crescimento da produção de soja com a chegada da Cargill foi a alteração nos processos de ocupação e uso do solo. “O fato de haver um comprador local, como a Cargill, impulsionou a migração de agricultores, causando pressão sobre áreas de floresta para cultivo em Santarém e essas pessoas venderam seus lotes a preços muito baixos e povoaram irregularmente a zona urbana”, lembra Erlan Nadler, secretário da FAMCOS (Federação das Associação dos Moradores e omunidades de Santarém). Desde o início do processo de instalação da empresa na região, Santarém perdeu uma área de mais de 1 mil km² de floresta – o equivalente a mais de 100 mil campos de futebol. Esse número é relacionado ao desmatamento acumulado entre 2000 e 2018, com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Maureen Santos, da Frente, explica às lideranças locais de Santarém sobre os efeitos do Acordo UE-Mercosul para os territórios. Foto: Paula Schitine

Conflitos fundiários também passaram a ser um problema na região. Uma pesquisa levantada no estudo realizado pelo Terra de Direitos publicado em 2021, indica que, entre 2000 e 2005, 90% das áreas do entorno da BR-163 mudaram de proprietário, principalmente, no trecho entre Santarém e Belterra. A valorização da terra foi um dos fatores que pode ter contribuído para a venda de propriedades de pequenos agricultores, mas não foi o único: relatos trazidos pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STR) apontam que, em grande parte, agricultores familiares foram pressionados a abandonar suas terras. Nesse cenário, as mulheres são as mais prejudicadas, obrigadas a sair de suas terras, aumentando a insegurança alimentar das famílias.

“Nòs nunca tínhamos sequer ouvido falar de soja e quando a Cargill veio se instalar em 1998, ela acabou com uma praia chamada Vera Paz onde tinham barraqueiros que vendiam produtos para os banhistas, todos foram expulsos”, lembra a presidente do STTR-STR, Maria Ivete Barbosa. Além disso, com a ampliação do porto foi soterrado um sítio arqueológico indígena.

Durante os 22 anos da chegada da empresa na região, os grupos étnicos não participaram da elaboração de condicionantes do empreendimento e foram excluídos de qualquer processo de participação, apesar da obrigatoriedade de Consulta Prévia. O  instrumento tem base na Convenção nº169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Polinizadores morreram

Uma castanheira solitaria em meio aos campos de soja com horizonte infinito. Foto: Samis Vieira

Os prejuízos ambientais e humanos são incontáveis. Percorrer os campos de soja com horizonte infinito é uma experiência desconfortável e revoltante. Observaodres e jornalistas internacionais ficaram perplexos em testemunhar tamanha adversidade. “As únicas beneficiadas com estes acordos comerciais bilaterais são as empresas transnacionais e não as pequenas e médias empresas e muitol menos as maiorias sociais”, critica Tom Kusharz, representante da organização Ecologistas en Acción, da Espanha.

O município de Belterra, que é quase quatro vezes menor geograficamente do que Santarém e com grande parte do território ocupado pela Floresta Nacional do Tapajós, perdeu mais de 158 km² de floresta em 18 anos, o equivalente a mais de 15.800 campos de futebol.

João do Mel lembra de quando perdeu toda a sua produção com a chegada da soja. Foto: Paula Schitine

 

Também em Belterra, a atividade de apicultura do produtor local conhecido como João do Mel foi completamente interrompida com a morte das abelhas sem ferrão que, além de produzir o mel, polinizavam frutas como o maracujá. Com o desaparecimento delas, tudo se perdeu em pouco tempo. “Eu tinha mil e poucas caixas de abelha e não sobrou nenhuma. O agrotóxico que vem no vento, vem na chuva, matou tudo em pouco mais de cinco anos, lamenta João do Mel. “Para o rico, para a soja tudo pode, e para os pobres?” questiona João, que mantém o nome da chácara mas hoje trabaha como marceneiro.

 

 

 

 

*Paula Schitine é jornalista da comunicação da FASE e viajou a convite da Frente Brasileira contra o Acordo UE-Mercosul.

A Frente Brasileira Contra os Acordos UE-Mercosul e EFTA-Mercosul tem coordenação executiva composta por: FASE, Amigos da Terra, INESC, Jubileu Sul, Contraf Brasil e conta com apoios de Misereor e Heks.