27/07/2016 15:55

Confronto na Maré

Rosilene Miliotti¹

Os dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP)  revelam que  17 pessoas morrem no estado por dia². Entre janeiro e maio deste ano, foram registradas 2508 vítimas de homicídios, latrocínios, autos de resistência e lesões seguidas de morte. Apenas em maio, foram 472 mortes por arma de fogo. Dessas, 40 foram em decorrência de intervenção policial, um aumento de 135% em relação ao mesmo período  de 2015.   O mês anterior ficou marcado como “abril  sangrento”, já que diversos homicídios foram registrados em favelas de diferentes regiões da cidade. Em 15 dias, policiais mataram pelo menos 25 pessoas em Acari, Jacarezinho, Mangueira, Turano, Complexo do Alemão e nos morros da Coroa, São João, Macacos e Babilônia.

Moradores da Maré protestam na Avenida Brasil contra ação do Bope na comunidade em junho de 2013, que resultou na morte de 10 pessoas. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Moradores da Maré protestam na Avenida Brasil contra ação do Bope na comunidade em junho de 2013, que resultou na morte de 10 pessoas. (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Desde a realização dos Jogos Pan-Americanos, em 2007, passando pela Copa do Mundo, em 2014, até as Olimpíadas, neste ano, movimentos sociais e organizações têm denunciado o aumento da violência contra a população pobre do estado. A campanha “Rio 2016, os Jogos da Exclusão” dá visibilidade para os impactos negativos desses megaeventos. “O Rio tem o estigma de ser uma cidade violenta, só que ela é violenta apenas em determinados espaços, e isso cria uma justificativa que é aceita pelo senso comum, a de que se pode agir com o uso mais intenso da força militarizada”, avalia Rachel Barros, educadora da FASE, organização que faz parte da articulação.

Segundo Rachel, o contexto dos megaeventos é de violação ao direito à vida. “Algumas favelas vão ter intervenção do Exército, e quando se tem esse tipo de ação não fica garantido o acesso a mecanismos da Justiça. Um exemplo é o caso do Vitor Santiago Borges, no Conjunto de favelas da Maré. Ele ficou paraplégico por conta de uma abordagem dos soldados e o seu caso está sendo julgado pela Justiça Militar. Isso coloca a população de favela em um território de exceção. A barbárie está gerando a perda de uma geração inteira”, lamenta.

Ao ser questionada sobre o aumento das mortes cometidas por policiais em favelas no período anterior aos megaeventos na cidade, a socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes (CESeC), responde que ainda não tinha analisado a questão por esse ângulo, mas que não esperava que a cidade chegasse aos Jogos com uma situação tão problemática na área da segurança pública. “Precisamos entender que há enormes desigualdades na segurança pública. Houve três mil roubos de veículos no estado em um mês, em Copacabana foi roubado apenas um. Na região de São Gonçalo [município da região metropolitana], foram 340 carros. Os tiroteios, por exemplo, acontecem em favelas e em áreas abandonadas pelo poder público, porque do Leblon [bairro elitizado], por exemplo, a polícia nunca saiu”, compara.

Silvia lembra que em Santa Cruz [bairro periférico da cidade], são 75 homicídios por 100 mil habitantes. Em Ipanema e no Leblon, são dois ou três por 100 mil. Esses números mostram que nas áreas sem policiamento inteligente há tanto crimes contra a vida quanto contra o patrimônio, e o sentimento é de que ‘estamos à deriva’. O Brasil não tem presidente, o Rio de Janeiro não tem governador e o secretário de segurança [do estado] não se pronuncia. A sensação é a de impunidade”, analisa.

Moradores do Complexo do Alemão pedem paz e justiça pela morte do menino Eduardo de Jesus, 10 anos, em 2015 (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Moradores do Complexo do Alemão pedem paz e justiça pela morte do menino Eduardo de Jesus, 10 anos, em 2015 (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Criminalização da pobreza e UPPs

Entre 29 de julho, uma semana antes da abertura dos Jogos Olímpicos, e 25 de setembro, sete dias após os Jogos Paralímpicos, está instituída o que a Organização das Nações Unidas (ONU) chama de Trégua Olímpica³. O secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, fez um apelo à suspensão de conflitos pelo mundo. “Uma pausa nos combates seria uma manifestação dos valores que os Jogos procuram promover: respeito, amizade, solidariedade e igualdade”, destacou Ban. Pensando nisso, Silvia acredita que não haverá incidentes visíveis durante o megaevento. “A cidade está tomada por militares e acho que o primeiro garoto que se aproximar dos locais de competição usando sandálias havaianas, vai ser retirado de circulação por policiais. Depois que prenderam homens suspeitos de ligação com o Estado Islâmico, eles têm uma legitimidade para fazer esse tipo de ‘limpeza’ e evitar que as pessoas pobres circulem. É capaz de passar uma pessoa em situação de rua com um saco nas costas e o cara ser retirado por conta de que o ‘saco é suspeito’”, ironiza.

Na criação das UPPs, em 2008, a política dividia opiniões: uns já apontavam que esse não era o caminho para melhorar a situação de violência, outros defenderam a estratégia, visão que recebeu  muito mais atenção nos meios de comunicação comerciais e refletia a opinião da maioria da classe média e alta dona de imóveis próximos de favelas localizadas em áreas nobres. Houve uma valorização imobiliária e, no início, uma redução de tiroteios nessas regiões. Entretanto, especialistas mais críticos já relatavam o prazo de validade do programa: os Jogos Olímpicos. Dito e feito.

Rachel lembra ainda que a imagem das UPPs começou a ruir até mesmo antes, com o assassinato do Amarildo, na Rocinha, em meio às Jornadas de Junho de 2013. Ela ressalta que, ideologicamente, as UPPs nunca foram feitas para viabilizar uma polícia de proximidade. “Tivemos diversos casos de mortes na Babilônia e no Chapéu Mangueira, muitos deles não noticiados. A UPP militariza. Acredito que não foram feitas para dar certo mesmo”, critica Rachel.

A publicitária Rachel Gepp, moradora do morro da Babilônia, na zona sul carioca, conta que a comunidade sofreu com diversos tipos de violência para se transformar em uma paisagem turística e está vivendo a volta dos conflitos armados. “A Babilônia passou por uma asfixia social. Os espaços públicos, que antes eram usados como local de trabalho ou de lazer, foram transformados em pontos de festas para turistas”, relata. Rachel chama atenção para o fato de direitos, como educação, saúde e trabalho, não terem chegado ao morro junto com o a ocupação policial. Ela lembra que na Babilônia muitos moradores também acreditavam no modelo de segurança apresentado, mas que esse “namoro” acabou. “A UPP funciona ali como um síndico. Estamos vendo esse projeto chegar ao fim. Ele não foi pensado para a população”, analisa.

Enterro de um dos jovens mortos na Babilônia em abril. (Foto: Rachel Gepp)

Enterro de um dos jovens mortos na Babilônia em abril. (Foto: Rachel Gepp)

Para Silvia, o erro foi não ter tido uma correção das falhas ao longo dos anos. “Não houve mudança de rumos das coisas ligadas às UPPs, que desde o início estavam dando errado. Além disso, temos uma situação grave: problemas estruturais estão coincidindo com os conjunturais, com o colapso financeiro do estado e um desgaste nas forças de segurança. A sensação é de retrocesso, embora não tenhamos voltado ainda aos números da violência que tínhamos em 2006, 2007 e 2008, muito menos o que tínhamos em 1997”, pondera.

Segurança após os Jogos?

A desconfiança sobre o que irá acontecer com a segurança pública no Rio de Janeiro após os Jogos Olímpicos toma conta de conversas entre amigos em bares, nas filas do ônibus, nos debates em universidades, dentre outros locais.  “Acho que será apocalíptico, o horizonte é muito sombrio”, opina Gepp. Já Silvia acredita que a cidade viverá uma situação em que os policiais vão dizer: “ufa, tá entregue”. “Na hora que acabarem os Jogos será o toque de retirada. Muitos defendem que os nove mil militares que estão nas favelas fazem falta no asfalto. De novo é aquela lógica: ‘deixem que se matem,  isso é coisa das favelas’. Estou muito preocupada e acho que nós, dos grupos de direitos humanos, teremos que nos juntar e pensar algo muito original para essa área, mas que não seja apenas criticar a polícia”, sugere.

Já para Barros algo urgente está justamente aí: desmilitarizar a polícia. “Para ter uma política de segurança completa teríamos que acabar com a polícia que existe e reconstruí-la em outros parâmetros. Sem isso não vejo a possibilidade concreta de pensar uma política de segurança. Sabemos que a polícia tem resquício do militarismo, com hierarquia, forma de abordagens com práticas da ditadura militar, de tortura. Além de ser uma instituição racista, embora os policiais, em sua grande maioria, sejam oriundos de espaços populares e sejam negros. Eles não se reconhecem nos seus iguais, apenas enxergam o estereótipo de bandido e criminoso.”, reforça a educadora da FASE.

Mas assim como Silvia e Gepp, Barros não vê um cenário positivo pós Jogos Olímpicos. Ela ressalta que os movimentos sociais, organizações e coletivos de resistência ao atual modelo de “cidade privatizada” precisam estar articulados para enfrentar a situação. E expõe que, ainda assim, existem limites para esses grupos da sociedade civil, pois esses procuram furar os bloqueios, mas que no momento isso não chega a provocar mudanças estruturantes. “Vamos continuar no enfrentamento. Ele é necessário para garantir a condição objetiva que é a de sobreviver. Nós, enquanto apoiadores, temos que ajudar nas mobilizações e nas denúncias. Garantir que eles [os mais diretamente atingidos pela violência institucional] continuem tendo força para estar nos seus espaços”, conclui.

[1] Jornalista da FASE.

[2] Essa reportagem faz parte do especial “Cidade Olímpica: um Rio de caos”, elaborado pela FASE no contexto da mobilização “Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão”.

[3] Com informações do site da ONU no Brasil.