12/09/2012 18:41

Por Lívia Duarte, da FASE

“Como é que você passou a ter uma atuação política?

Eu morei em 20 anos em uma favela aqui no Recife. Conviver com aquela situação e não aceitar aquela realidade era um fato concreto na minha vida. Desde a adolescência aquilo me indignava. A falta de emprego. A moradia que era só barraco. Eu não queria pra minha vida!

Mas então por que lutar pelo direito das mulheres se a pobreza afeta a todos? Por que percebemos que um grupo é ainda mais afetado que os outros!?”

 Foi assim, em conversas como esta entre Lúcia Xavier e Shirley Bárbara, cheias de perguntas e procurando juntas as respostas, que cada experiência cotidiana foi apontando os caminhos de ligação dos novos conceitos apresentados no Seminário Gênero, Raça e Justiça Ambiental. A atividade realizada pela FASE Pernambuco em parceria com a Casa da Mulher do Nordeste, Etapas e o Centro das Mulheres do Cabo, reuniu mais de 40 mulheres do movimento feminista do estado em 16 e 17 de agosto, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo.

No intervalo em que concedeu a entrevista a seguir, Lúcia, que é da ONG Criola e realizou a mediação do Seminário, destacou que garantir um olhar especial sobre as mulheres, e as mulheres negras, diante da pauta do direito à cidade, é diferente de segmentar essa pauta. Compreender a diversidade é uma forma de qualificá-la.

Leia a entrevista a seguir:

FASE – Acompanhando o seminário Gênero, Raça e Justiça Ambiental é possível perceber que o desafio é construir nexos entre os temas. Para começar, proponho que nos ajude com duas destas questões: direito à cidade e gênero. Por que é importante, ao pensar na cidade – onde vivem homens, mulheres, velhos, crianças-, pensar nas questões de gênero especificamente?

Lúcia Xavier – Na verdade, essas questões estão todas imbricadas, uma não existe sem a outra. Mas, no caso do direito à cidade, ele vem afirmar um dos primeiros direitos conquistados pelas mulheres, que foi o direito de ir e vir. Esse direito tem a ver com a relação entre o público e o privado, com poder estar na cidade em qualquer espaço, a qualquer hora, sem o crivo de ninguém – seja pai, marido, irmãos. Então, o direito à cidade fala também diretamente da construção deste novo papel de gênero pelas mulheres. Mas também fala das injustiças históricas, da falta de segurança, da falta de autonomia delas.Afirmar o direito à cidade para nós é exatamente reafirmar dimensões do feminismo.

E você pode dar exemplos concretos de violações do direito à cidade para as mulheres?

Além das dimensões da discriminação e culturais, podemos considerar como exemplo a má qualidade e quantidade do transporte, algo que afeta diretamente as mulheres considerando as longas jornadas de trabalho e o fato da maioria trabalhar no campo doméstico e no mercado informal. Então, o transporte está muito associado às dimensões da qualidade de vida, à livre circulação, ao acesso aos serviços, aos bens culturais, etc.

Ainda se olharmos a segurança vamos ver que as mulheres não estão expostas somente à violência em geral. Há também a violência que caracterizamos como de gênero: o assédio, a perseguição, a violência sexual e a falta de respeito à presença de mulheres em determinados ambientes. E, ligado a isso, também tem a circulação nos espaços. Determinadas áreas sempre foram caracterizadas como proibidas às mulheres: ou são ambientes masculinos, ou de prostituição, ou são locais em que a dimensão moral fala muito profundamente na cultura da cidade ou daquele grupo. Certamente, isso causa para as mulheres certo constrangimento. E influencia o direito a estudar, a encontrar serviços adequados para a garantia da sua saúde, do seu desenvolvimento…

Já no caso das mulheres negras, nunca foi um empecilho ter acesso à cidade. Historicamente eram consideradas marginais. Então andavam por tudo quanto é lugar. Mas quando falamos das condições econômicas, as mulheres negras são as mais afetadas. São aquelas que moram nas áreas mais periféricas, lhes faltam serviços e o seu acesso começa a ser dificultado – não só o acesso ao trabalho, mas também a todos os outros bens e serviços que a sociedade oferece. Soma-se aí a representação da mulher negra, que seria aquela que pode estar em qualquer lugar – a mulher que não é “mulher de família”, que não teriam uma moral ilibada… Então, ficam muito vulneráveis às violências – especialmente as relacionadas ao gênero, à violência sexual. Porque nesta representação é como se o corpo das mulheres negras também fosse público.

Então a luta pelo direito à cidade acaba tendo que incorporar outras dimensões que não incorporaria se pensássemos apenas a população de modo geral.

Você está dizendo que o olhar específico então não segmenta, mas qualifica o debate?

Com certeza. As mulheres qualificam essa luta, porque não pensam pura e simplesmente numa moradia. Pensamos numa moradia considerando os serviços, o espaço comunitário, a dimensão de lazer, considerando também esses lugares como de formação dos filhos e dos jovens. As mulheres mudam a qualidade dessas reivindicações na medida em que incorporamos um olhar diferenciado para o funcionamento da cidade. E, de certa forma, todas essas dimensões acabam também evidenciando as dimensões de orientação sexual, as dimensões de raça, e como é que cada grupo consegue vivenciar as relações urbanas.


Neste debate sobre Gênero, Raça e Justiça Ambiental as soluções para questões ambientais inicialmente apresentadas pelas participantes quase sempre tinham a perspectiva do indivíduo. Isso surpreende em um grupo tão acostumado às lutas coletivas?

Na sociedade é forte esta ideia de que os problemas ambientais são um problema da conduta individual. Assim, quando apresentamos o tema em um seminário como este, as primeiras respostas são medidas individuais: diminuir o consumo, basicamente; considerar a relação entre as necessidades de cada uma e condição de preservação da natureza. Por exemplo, diminuindo a quantidade de tempo no chuveiro, para reduzir o gasto de água e o uso indevido da energia elétrica. Isso é uma medida importante, traz um efeito ao longo do tempo importante, mas – na verdade – é preciso questionar o modelo de desenvolvimento. Por que as indústrias precisam utilizar tanta energia elétrica e tanta água? Para elas, não há nenhum tipo de medida: nem educativa, nem moral, nem política e nem legislativa para o controle do uso desses bens comuns. Portanto, isso tudo ainda não era uma leitura realizada por elas para pensar a garantia dos seus direitos.

O conceito “Justiça Ambiental” aparece aqui no seminário como uma novidade. Como incluir mais esta peça na história de luta das mulheres?

Na verdade, estas mulheres já fazem isso aqui em Pernambuco. Elas já têm – sem ter esse nome – na sua agenda política essa dimensão como tema importante. A maioria vem de lutas que revelam a quebra completa dos direitos, especialmente destes que a gente trabalha mais amiúde, os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais. Elas sofrem os impactos, mas não dão nome de “injustiça ambiental” ou “justiça ambiental”.
Os depoimentos mostram que elas ainda não veem nos conflitos em torno da moradia a característica das injustiças ambientais. Um exemplo é a vida à beira do rio aqui em Recife. Hoje a sociedade diz que é um problema que estas mulheres sigam ali, que elas geram um problema ambiental. Mas não é problema que outro grupo, de outra origem, viva nos prédios às margens do Capibaribe. Há uma diferença aí. Portanto, é necessário conjugar também outros instrumentos do debate sobre Justiça Ambiental para a luta pelo direito à cidade, é preciso compreender a interligação entre tantos temas. Quando alguém luta por moradia hoje – moradia adequada e de qualidade – luta também por uma condição socioambiental melhor. A princípio, as lutas por direitos são movidas pelo concreto. E o concreto é a casa, o trabalho. Mas tudo isso está imbricado. Portanto, se conseguirem sair daqui pensando que há diferentes instrumentos para fazer valer a Justiça Ambiental, possivelmente conseguirmos também incorporar essas dimensões nas nossas lutas diárias.