31/05/2016 15:49

Arte 3

Gilka Resende e Rosilene Miliotti¹

O acordo assinado entre os governos federal, os dos estados de Minas Gerais e de Espírito Santo e a mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela australiana BHP Billiton, não contou com a participação das famílias atingidas pelo rompimento da barragem de Fundão, considerado o pior desastre social e ambiental da história do Brasil. A afirmação é do Ministério Público Federal (MPF), que divulgou, nessa segunda-feira (30), ter recorrido à Justiça Federal para suspender o acordo a fim sanar suas “omissões e contradições”. Não sendo possível a correção dos desvios na proposta, o MPF solicitará a anulação do documento. Agora, cabe ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em Brasília, o julgamento da questão. De tão graves, segundo o MPF, após quase sete meses da tragédia, ainda não é possível mensurar completamente os danos, até porque eles continuam a ocorrer por todo o percurso da lama.

Município de Bento Rodrigues um mês após o crime ambiental. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Bento Rodrigues um mês após o crime ambiental. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

O rompimento da barragem causou 19 mortes e desalojou populações pelo caminho percorrido pelos rejeitos, que desceram pelos rios, principalmente pelo Doce, até chegar ao oceano Atlântico. Além do MPF, pesquisadores também criticaram o acordo estabelecido entre o poder público e o empresarial. O Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TAC) foi analisado, por exemplo, pelo Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS)². Um laudo publicado em abril elencou problemas no TAC. “Os principais interessados na recuperação, mitigação e compensação dos danos, os atingidos e atingidas, não debateram suas cláusulas ou integraram o processo de construção de seus objetivos. Com este documento, nenhum direito pode ser garantido”, reforça a pesquisadora Raquel Giffoni, uma das autoras do estudo. Ela explica que os TACs são comuns, principalmente, na fase de licenciamento ambiental de grandes obras, na qual a empresa participa da elaboração dos termos quando, na verdade, apenas deveria cumprir as determinações.

O acordo em questão estabeleceu um prazo de 15 anos para a recuperação da bacia do rio Doce. Os recursos aportados pelas empresas até 2018 são da ordem de R$ 4,4 bilhões. Depois, a previsão anual seria de R$ 1,2 bilhão, podendo chegar a R$ 20 bilhões ao final do período. A responsável por empregar essas quantias seria uma fundação dirigida por um conselho de sete membros. Cada mineradora envolvida tem dois representantes nessa instância. Já o Estado possui apenas um membro.

Concentração de poder

“Para quem lê o acordo, os órgãos públicos parecem compartilhar da ideia de que buscam a garantia e a defesa dos direitos e interesses transindividuais, destinando o poder de decisão à fundação criada pelas empresas, aos órgãos ambientais, aos especialistas a serem contratados e à burocracia estatal”, analisa Raquel. A pesquisadora é enfática ao dizer que não há uma real pretensão de reparação aos danos sociais e ambientais. “O que existe é uma tentativa explícita de controle social pela empresa. A criação da fundação, responsável por todas as ações de recuperação, remediação e compensação associada ao rompimento da barragem, irá agravar a dependência das populações junto a empresa. O poder de estabelecer quais pessoas serão consideradas impactadas ou quais serão atendidas pelos projetos foi transferido para a fundação”, destaca. A pesquisadora alerta que a situação aumentará o poder da empresa no território.

Outro elemento que chama atenção de Raquel é a possível ausência de mediação do poder público. “O documento indica que a negociação se dará diretamente entre a fundação e as pessoas atingidas, em esfera individual. Nesse sentido, deve ser levada em consideração a vulnerabilidade e a dependência, já que muitas pessoas estão vivendo em casas alugadas pela Samarco e ainda seguem sobrevivendo por meio de ajuda financeira paga pela empresa”, ressalta.

Abertura da barra sul da foz do Rio Doce, em Regência (ES), por conta do rompimento em MG. (Foto: Prefeitura de Linhares)

Abertura de foz do Rio Doce, em Regência (ES), por conta do rompimento em MG. (Foto: Prefeitura de Linhares)

Para Guilherme Pontes, secretário das Brigadas Populares em Minas Gerais, a Samarco está trabalhando para criar um “clima de medo” na cidade. A empresa já apresentou planos de trabalho iniciais aos técnicos dos governos federal e estadual, pedindo a desinterdição de parte do Complexo de Germano, onde se localizava a barragem do Fundão, dentre outras que acumulam rejeitos da exploração de minérios. “Eles dizem que se as atividades não forem retomadas de forma imediata, a cidade vai à falência, que os empregos serão cortados e que a economia não se sustentaria sem a Samarco”, aponta. A justificativa da empresa para voltar a operar é a de honrar os compromissos financeiros. Recentemente, a prefeitura de Mariana concedeu liberação para reativação da área. A administração municipal já afirmou publicamente que a Samarco é responsável por mais de 80% da receita do município.

Mariana está entre os 10 municípios de maior Produto Interno Bruto (PIB) de Minas Gerais, segundo a Fundação João Pinheiro. No entanto, Guilherme diz não ver isso refletido na qualidade de vida da população. “Essa riqueza não é revertida para os moradores da cidade, para o povo de Minas Gerais ou mesmo para todos os brasileiros”, contesta. Ele também afirma que os serviços públicos da cidade são precários. “Não temos tratamentos de água e de esgoto adequados. A educação e a saúde são de má qualidade”, exemplifica. Sobre o atendimento imediato aos atingidos e atingidas após a tragédia, ocorrida em novembro de 2015, Guilherme relata que foi deficiente e que o amparo disponibilizado pela empresa até o momento só tem ocorrido diante de muita pressão popular. “Passado todo esse tempo, o que se pode dizer é que Mariana ainda não consegue fazer um debate de forma séria sobre a mineração. No momento é preciso repensar esse extrativismo mineral, que perdura na cidade por séculos”, diz.

Desenvolvimentismo e racismo ambiental

Grupos como a Articulação dos Atingidos e Atingidas pela Vale e o Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, dos quais a FASE faz parte, também têm criticado o desenvolvimentismo ligado à exploração de minérios e de outros bens naturais³. Guilherme, que faz parte de mobilizações por justiça, critica a Samarco por pensar mais nos lucros do que na reparação dos danos resultantes do crime, que destruiu estruturas públicas e privadas, áreas agrícolas, regiões de preservação ambiental, territórios indígenas e prejudicou a biodiversidade em terra e águas. “Temos escutado muito falar em retomada de crescimento econômico, mas Mariana é um exemplo clássico do quanto esse tipo de desenvolvimento pensado para o país não beneficia o povo. Essa riqueza que está no solo é de todos os brasileiros”, destaca Guilherme.

A Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA) aponta que cerca de 85% das vítimas que viviam a menos de dois quilômetros da barragem rompida em Mariana são negras, o que configura um caso de racismo ambiental. “Essa aparente ‘coincidência’ é um reflexo da lógica racista, negligente e irresponsável do Estado nos licenciamentos e controle ambiental para favorecer projetos econômicos causadores de desastres”, analisa um dos documentos da Rede. O estudo feito pelo PoEMAS também demonstra que a população local teve bens mais que materiais perdidos. Foram destruídos modos de vida e planos para o futuro. Entre as histórias registradas pelo grupo está a de Priscila Barros, ex-moradora de Bento Rodrigues, distrito varrido do mapa. Ela estava grávida quando foi arrastada pela força da lama e sua gestação não resistiu ao trauma. Apesar de a Samarco ter aceitado indenizar famílias que perderam parentes, Priscila não recebeu nada. De acordo com o estudo, a empresa argumentou que, por ainda não ter nascido, o filho a ser gerado não poderia ser considerado vítima.

Manifestação em frente a antiga sede da Vale, no Rio de Janeiro. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

Manifestação em frente a antiga sede da Vale, no RJ. (Foto: Rosilene Miliotti / FASE)

A conceito de racismo ambiental nasce nos Estados Unidos a partir de protestos realizados por movimentos negros para denunciar que o despejo de venenos de lixões, a instalação de empreendimentos poluentes, o derrame de pesticidas nas águas, dentre outros impactos negativos, ocorriam repetidamente em seus locais de moradia, bem longe de zonas mais elitizadas. O que os grupos descreveram, ainda nos anos de 1980, segue acontecendo em diversos territórios, afetando indígenas, quilombolas e populações de áreas mais empobrecidas nas cidades, no campo e nas florestas. Um exemplo ocorre na Amazônia. Entre os novos empreendimentos previstos pela Vale está uma ferrovia que pretende ligar Eldorado dos Carajás, no Pará, ao Porto de Barcarena, no Maranhão. A FASE acompanha duas comunidades quilombolas ameaçadas pela construção da linha férrea: África e Laranjituba, no município paraense de Abaetetuba. O que pode parecer um “grande avanço” para uns, significa esperar um trem de cerca de 1500 metros passar para se conseguir circular livremente em seu próprio território tradicional.

Denúncias sobre atropelamento de pessoas e animais são frequentemente feitas por organizações, como a Justiça nos Trilhos, nas antigas ferrovias da mineradora. Para que mais episódios como esses não aconteçam, foi organizado um intercâmbio entre quilombolas do Pará e os do quilombo de Santa Rosa dos Pretos, no Maranhão. Lourenço Bezerra, educador do programa da FASE na Amazônia, acompanhou esse encontro. Ele relata que o espanto foi imediato e que foi possível perceber os danos causados à vida de pessoas e à natureza. “Esse intercâmbio deixou uma lição. Além desse problema no território quilombola, estamos em uma região em que a iniciativa privada e os investimentos públicos vêm para tirar os direitos, para expulsar as pessoas de seus territórios. E aí a questão do minério se junta à pressão das empresas de produção de agrocombustível, de soja e de pecuaristas”, analisa.

Lourenço, mais conhecido como Macarrão, atua no baixo Tocantins, nordeste do Pará, e lembra que a região é alvo de interesses internacionais porque está próxima geograficamente das vias de escoamento de commodities [matéria-prima] para mercados estrangeiros. “A construção infraestruturas na Amazônia, como portos, aeroportos, hidrovias, ferrovias e das rodovias, está a serviço da iniciativa privada, não dos seus habitantes”, conclui.

[1] Jornalistas da FASE.

[2] Estudo é assinado por Raquel Giffoni, professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), e Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

[3] Está reportagem faz parte da série “De Carajás a Mariana – relembrar o passado, resistir no presente e enfrentar o futuro”, elaborada pela FASE. Leia outros conteúdos: matéria sobre intervenção de acionistas críticos na assembleia anual da Vale e entrevista sobre a histórica necessidade de reforma agrária.