05/10/2016 17:15
Rosilene Miliotti¹
A ferrovia Norte/Sul, que quer ligar Açailândia, no Maranhão, ao Porto Vila do Conde, no município de Barcarena, no Pará, pretende ter um traçado de 477 quilômetros e um custo estimado em cerca de R$ 7,8 bilhões. O objetivo do empreendimento seria “melhorar” o escoamento da produção agrícola. Instituições do agronegócio defendem a construção da ferrovia para escoar parte da produção de soja, milho, algodão, carne e madeira². Mas melhorar o escoamento da produção de quem? As primeiras informações dão conta de que essa linha passará por terras quilombolas, indígenas e de agricultores familiares, e isso já preocupa as comunidades África e Laranjituba, no nordeste paraense, assessoradas pelo programa da FASE na Amazônia.
Lourenço Bezerra, educador da FASE que atua na região, explica que além da ferrovia, um “linhão” de energia, que vai de Belo Monte a Belém, passará por dentro desses territórios. “Essas comunidades vivem basicamente do agroextrativismo, principalmente da castanha, açaí, caça e pesca. Essa ferrovia [da Vale] irá acabar com o modo de vida dessas pessoas. Um fato que chama atenção é que se um dos quilombolas tombar uma castanheira, por exemplo, ele vai preso. Com a passagem dessas linhas, como vai ser? A Vale e a empresa responsável por Belo Monte poderão derrubar as castanheiras sem sofrer punições?”, questiona.
Em abril deste ano, representantes desses territórios quilombolas do Pará, junto com educadores da FASE e de outras organizações, visitaram Santa Rosa dos Pretos, no município de Itapecuru-mirim, no Maranhão. A comunidade é cortada pela ferrovia Carajás – que liga São Luis, no Maranhão, a Serra dos Carajá, em Parauapebas, no Pará – e sofre há 30 anos com os impactos causados por outra ferrovia da Vale. Eles puderam ver e ouvir relatos reais sobre os transtornos causados pela mineradora em relação, por exemplo, à fuga dos animais, à morte por atropelamento de crianças e de animais domésticos, à cegueira causada por produtos químicos que escorrem dos vagões e de pessoas que morreram nas ambulâncias, porque tinham que esperar o trem passar para serem socorridas. “Imagine morar em um lugar em que a cada 25 minutos um trem de 3.500 metros de comprimento passa no meio da comunidade? Agora, pense que a Vale está duplicando essa linha e o intervalo vai passar a ser de apenas cinco minutos. Em breve, essa poderá ser a realidade dessas pessoas”, critica Lourenço.
Leocádia Morais de Oliveira, do quilombo África, explica que as empresas pretendem passar por essas comunidades porque, de acordo com o projeto, sua construção ficaria mais barata. “Ninguém, nem do governo e nem da empresa, nos procurou para conversar, mas tive a preocupação de visitar outros lugares que já sofrem com os impactos de ferrovias. Vi que coisa boa não tem. O que mais me impactou no Maranhão foi ver os igarapés destruídos. Tenho esperança que a linha não passe por aqui”, espera. Lourenço lembra que em Santa Rosa dos Pretos ouviu relatos sobre o aumento da oferta de empregos com essa construção. “Mas que emprego e esse? É levantar barra de ferro, um trabalho que nem todo mundo aguenta?”, questiona. Para Leocádia, é preciso lutar e “amenizar os impactos”.
Em Laranjituba, o morador Aloísio Rodrigues Morais acredita que poucas pessoas têm a real dimensão sobre os impactos da construção da linha férrea e do “linhão” de energia. “Aqui vivem cerca de 40 famílias e pouco se sabe sobre esses projetos, mas pelo que assisti em um vídeo sobre a situação no Maranhão, a destruição da terra é algo preocupante porque hoje, aqui, tudo que a gente planta, nasce. Se perdemos nosso chão, vamos viver de quê?”, questiona. Para ele, é difícil unir a comunidade. “Já ouvimos algumas pessoas falarem em vender a terra caso a construção da ferrovia aconteça. Elas estão se iludindo achando que vão ganhar muito dinheiro. A gente que é pobre não consegue brigar com quem tem recursos, mesmo na Justiça. Em outras regiões já impactadas, tem famílias esperando para receber indenização até hoje”, alerta.
Jovens quilombolas
Vanessa Nascimento de Oliveira, 21 anos, não tem vontade de sair do quilombo África para morar em uma cidade grande. “Tenho um filho pequeno que brinca no igarapé e anda no ramal [caminho até a estrada] sozinho, com o trem ele vai ficar preso. Aqui ele é criado solto e não sei o que fazer caso a linha atravesse esse território, mas tenho certeza que as coisas ficarão mais difíceis”, lamenta. Lourenço ressalta que em Santa Rosa dos Pretos as pessoas diziam que não tiveram a oportunidade de lutar. “Uma das coisas que a FASE tem pensado é em realizar um intercâmbio com um número maior de pessoas para mostrar os impactos causados por essas empresas. Com mobilização, há possibilidade de impedir a construção”, comemora.
Para Claudio Morais Cardoso, 22 anos, de Laranjituba, não há possibilidade de sair da comunidade. Ele explica que há alguns anos as pessoas saiam do quilombo para morar em Belém, mas que agora o caminho está sendo inverso principalmente por causa do aumento de custo de vida e da violência na cidade. Sobre a desapropriação da terra, ele sabe que será uma luta difícil, mas diz não poder aceitar ficar sem o direito de ir e vir, por exemplo. “Vivo aqui desde que nasci e não posso admitir que, de uma hora para outra, que uma empresa tire tudo que temos. E o castanhal? Vão quebrar tudo?”, questiona. Segundo ele, na comunidade os mais novos seguem a profissão dos mais velhos. “Desde criança eu ajudava meus pais na produção de farinha e na extração de açaí. Agora, ainda estamos plantando outros alimentos”, relata.
Economia X Direitos
As populações quilombolas vêm sendo prejudicadas pelo modelo de desenvolvimento adotado no país. Organizações e movimentos sociais têm apontado que a judicialização dos conflitos, apesar de ser importante para mediar disputas e garantir direitos, não é suficiente. A Vale enfrenta diversas ações, mas acaba ganhando a maioria, porque os direitos das comunidades impactadas pelos empreendimentos, no debate jurídico, tendem a perder por não se enquadrarem na definição do “interesse social” ou da “viabilidade econômica”.
A negação dos direitos dos quilombolas, indígenas, ribeirinhos e pequenos agricultores abre brechas para a expansão do modelo de extração do minério. “As comunidades no Maranhão já fecharam a ferrovia, negociaram, mas a negação de direitos e os crimes continuam. Quando visitamos a área, fomos monitorados o tempo todo por pessoas em motos”, justifica Lourenço.
[1] Jornalista da FASE.
[2] Errata: a ferrovia que pretende passar pelos territórios quilombolas em questão ligará Açailândia (MA) a Barcarena (PA), e não Lucas do Rio Verde (MT) a Itaituba (PA) (como inicialmente publicamos nessa reportagem).