06/12/2016 13:35
Flavia Bernardes¹
A pluralidade, a multiplicidade e a dinamicidade das identidades de gênero são próprias dos processos de construção de sujeitos nas sociedades contemporâneas e, também por isso, devem ser tratadas como direitos de todas as pessoas. O programa da FASE no Espírito Santo e o Serviço de Analise e Assessoria a Projetos (SAAP/FASE) reuniram, apoiaram e estabeleceram diálogo durante um ano com coletivos de mulheres jovens, pescadoras, quilombolas, negras, ou seja, mulheres que se unem de diferentes formas e constroem propostas de afirmação de suas identidades, de enfrentamento ao machismo, as intolerâncias e aos preconceitos na perspectiva da defesa de seus direitos.
Neste contexto, e após um processo de formação e muito trabalho, os grupos apoiados pelo Fundo de Apoio Estratégico (FAE) se reuniram nos dias 26 e 27 de novembro, em Nova Almeida, no município capixaba de Serra, para avaliar os 10 projetos desenvolvidos durante o ano de 2016 e construir um novo modelo coletivo e complementar entre os grupos apoiados. “A ideia é avaliar o que foi feito até agora, os principais entraves identificados frente à luta dos direitos das mulheres e pensar o que podemos fazer juntas daqui para a frente para enfrentá-los. O FAE se organiza em duas etapas. Na primeira apoia o trabalho de cada organização e na segunda, caso tenha acordo dos grupos, avaliamos, planejamos e apoiamos ações articuladas entre eles. Este é um apoio que não é apenas financeiro, é um apoio para que mulheres se fortaleçam e para que seus processos de luta sejam consolidados”, explicou Luiza de Marillac, educadora do SAAP.
Durante o encontro, ao revisitarem os projetos e ouvir as avaliações, foi possível perceber como de cada grupo poderá interagir com o outro, contribuindo para ações interligadas e complementares. Ao debater as mais diversas formas de se somarem, as mulheres deixaram claro os eixos prioritários em que querem trabalhar, como o fortalecimento do artesanato, a ampliação do debate sobre a saúde e o conhecimento sobre o corpo da mulher, a gestação e o parto, a importância das ervas medicinas, bem como seu fortalecimento político e cultural. “Nós produzimos o ano todo, seja com escamas, conchas ou com a costura. Antes participávamos de três feiras anuais, agora ampliamos para até seis. Participamos também do Fórum Estadual de Economia Solidária e queremos que as mulheres se tornem autônomas e donas de suas vidas. Quando começamos, muitas tinham que pedir dinheiro aos maridos para tudo. Hoje estamos vendo isso mudar. Já somos em 42 mulheres multiplicadoras e focadas em fortalecer a autonomia (nossa e de outras) na região”, afirmou Rosângela Maria Silva Richa, do grupo Marobart.
Fortalecer para garantir a luta e os direitos das mulheres
Através do projeto coletivo, os grupos terão a possibilidade de ampliar seu trabalho, fomentando não apenas os temas abordados por cada um, mas também garantindo a troca de saberes e de lutas presentes na agenda das mulheres. Desta forma, é possível ampliar as chances de renda, de troca de conhecimentos e práticas, o fortalecimento político e a garantia de direitos. Diante disto, as mulheres de norte ao sul do estado, em territórios de atuação do programa da FASE no Espírito Santo, devem formar um coletivo que contemple as necessidades e os anseios para o futuro, o que permitirá uma livre circulação de ideias, palestras, rodas de conversas, entre outras formas de trocas.
A expectativa é que os grupos garantam a convergência entre eles e seus territórios através de um tema central e de oficinas específicas, facilitadas por cada uma das organizações apoiadas pelo FAE. Os projetos coletivos serão formados pelos grupos: Associação de Artesãs de Marobart, Casa da Mulher, Zalika e Associação de Pescadore/as Artesanais de Porto de Santana (APAPS). E o outro por: Grupo Comunitário Quilombola Coletivo em Ação, ONG Movimento Social e Popular, Kisile e Sawabona. Cada projeto contará com o apoio de R$ 20 mil.
Diante da atual conjuntura, as mulheres aceitaram a proposta de desenvolver projetos coletivos como um desafio e uma oportunidade de somar seus esforços, além de se estruturarem fisicamente e economicamente, garantindo assim a estrutura necessária para ampliar ainda mais o debate sobre seu papel na sociedade. “Vejo a questão da saúde como um grande desafio diante da conjuntura política atual. O acesso é cada vez mais difícil. A Farmácia Popular parece que já acabou e só esqueceram de nos avisar, tiraram um monte de profissionais ligados ao Mais Médicos e estão terceirizando o Sistema Único de Saúde (SUS) já faz um tempo, além de criarem um ‘plano de saúde público’ que pretende acabar com o nosso SUS. O que antes já não estava bom, agora está ficando pior”, afirmou Vagna Araújo, do grupo Casa da Mulher.
Com esse quadro de incertezas posto, as mulheres ressaltaram preocupações com a saúde, o desenvolvimento desenfreado proposto pelo Estado, que vem ditando o modo de vida da população, a extinção do Ministério da Pesca, que poderá prejudicar as mulheres que vivem deste ofício e enfrentam grande preconceito dentro do próprio poder público, a qualidade dos alimentos consumidos pela população e o ambiente contaminado em que estamos vivendo.
Solidariedade coletiva
O encontro também proporcionou a formação de uma rede de solidariedade em apoio ao Coletivo Mulheres Quilombolas em Ação. Através de uma carta escrita durante o evento, os grupos apoiados pelo FAE pediram a permanência das famílias que vêm recuperando suas terras, farinheiras, plantações, hortas comunitárias nas áreas retomadas no território quilombola do Sapê do Norte, nos municípios de Conceição da Barra e São Mateus, que mais uma vez sofrem com ameaças. “Tivemos problemas na execução do nosso projeto porque a terra destinada às mulheres foi ameaçada. Eu fui ameaçada. Não foi fácil, tive que sair da terra e viver uma realidade que não é minha morando na cidade de aluguel sem poder pagar. Ainda sim, o projeto nos ajudou muito. Éramos 15 e agora somos 40 e todas têm uma horta medicinal em suas casas, nos fortalecemos. Mas ainda vivemos uma situação de insegurança. Somos em 24 famílias ameaçadas de perder seus lares”, denunciou Joice Nascimento Cassiano, moradora de uma área retomada dentro do território quilombola invadido há mais de 40 anos pelas empresas Aracruz Celulose (hoje Fíbria), Suzano e Disa. Para as mulheres, que repudiaram a pressão e a coação, estas áreas são fundamentais para a subsistência das famílias quilombolas, visto que nelas acontece a reconversão das áreas degradadas pelo monocultivo de eucalipto em regiões produtivas, reflorestadas e de moradia, garantindo não apenas a segurança alimentar, mas a geração de renda e o acesso à água.
Mesmo diante dos conflitos, o projeto Coletivo em Ação realizou oficinas de ervas medicinais, de língua Iorubá, além de um encontro com mulheres negras no espaço do grupo Kisile, na Serra, estreitando os laços e a solidariedade entre os grupos. Joice afirma que através do projeto foi possível garantir um espaço para o encontro das mulheres e que o próximo passo do grupo é publicar uma cartilha para divulgar os saberes quilombolas sobre as ervas medicinais na região.
[1] Educadora do programa da FASE no Espírito Santo, com a contribuição de Cleia Silveira, coordenadora do SAAP.