09/04/2018 16:57
Patricia Fachin¹
“Nenhuma pessoa que vive em favela desconhece o fenômeno da violência de maneira acrítica. O que ocorre é que as pessoas precisam lidar com uma série de forças que estão presentes nos seus espaços de vida, e isso tem impactos sobre o alcance da sua crítica”. A observação é da doutora em Sociologia e educadora do programa da FASE no Rio de Janeiro, Rachel Barros², que há mais de dez anos tem contato com as comunidades que vivem nas periferias do Rio de Janeiro, especialmente com os moradores do complexo de favelas de Manguinhos.
Na entrevista, concedida para a Instituto Humanitas Unisinos (IHU On-Line), Rachel relata que “os moradores de favelas têm os seus espaços de vida controlados e/ou invadidos por diferentes forças coercitivas”. Segundo ela, para entender a dinâmica de violência e coerção nesses territórios e os problemas relacionados à segurança pública no Rio de Janeiro, é fundamental analisar a “atitude de conivência e manutenção dessa estrutura por parcelas do Estado”.
Contrária à intervenção militar na cidade carioca, Rachel frisa que “ela se fundamenta numa suposta ausência de ordem pública, materializada num suposto aumento da violência. Até o momento, o que estamos vivenciando é o incremento de recurso em armamentos bélicos, que são usados de forma criminosa nas operações em favelas”.
Qual sua leitura da execução da vereadora carioca Marielle Franco, no Rio de Janeiro? Quais diria que são as causas envolvidas nesse caso?
Marielle Franco era uma mulher negra, oriunda da favela da Maré. Uma parlamentar que teve como plataforma política as demandas da maioria da população que vive de forma precária nas cidades. Seu assassinato, além de ter sido um ataque brutal a toda forma legítima de participação política democrática, foi mais um sinal de como corpos negros são tratados em nossa sociedade. Apesar de estar na vereança, ocupando um cargo de poder, o fato de ser uma mulher negra continuou tornando Marielle um corpo matável. E essa leitura não pode deixar de ser feita. Marielle serviu de exemplo para muitos moradores de favelas, que na sua atuação como vereadora viram a possibilidade de serem reconhecidos como cidadãos que fazem parte da cidade. Para mulheres jovens e negras, Marielle foi um exemplo a ser seguido de que é possível ocupar espaços de poder.
É difícil especular sobre as causas de seu assassinato e de Anderson Gomes, pois as investigações ainda não apresentaram nenhum resultado contundente. Certo é que foi um crime extremamente premeditado e que envolve setores da segurança pública, visto que as balas usadas na sua execução foram compradas pela Polícia Federal em 2006.
Como essa execução pode ser compreendida à luz do quadro de violência instalado no Rio de Janeiro?
O Rio de Janeiro tem servido, nos últimos anos, como uma espécie de laboratório para políticas de segurança pública replicadas em outros estados. Contudo, o que temos visto é que estas iniciativas não deram resultados no longo prazo. Tivemos as Unidades de Polícia Pacificadora – UPPs (2008), que durante um período foram responsáveis pela queda no número de confrontos armados, resultado que não se manteve. O desaparecimento de Amarildo em 2013 e, nos anos seguintes, o retorno dos tiroteios e assassinatos nas favelas, desmentiam todas as análises afirmando que as UPPs teriam resolvido o problema da segurança na cidade. Além disso, esta política foi responsável por inúmeras outras violações de direitos, tais como proibir a realização de festas nas favelas, substituir o papel das secretarias públicas na resolução de problemas cotidianos, ameaças a jovens que já tinham passagem pelo sistema socioeducativo, entre outras.
A atual medida de intervenção militar tem seu início com base na falácia de que o Rio de Janeiro estaria vivendo uma onda de violência anormal, especialmente durante o carnaval deste ano. Esta suposta escalada de violência não apenas é contestada pelos dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), como apresenta progressiva diminuição ao longo dos anos (5.865 ocorrências policiais no carnaval de 2018; 5.773 no carnaval de 2017; 9.016 no carnaval de 2016 e 9.062 no carnaval de 2015). Isto mostra que mais uma vez a forma como a segurança pública é pensada no Rio de Janeiro responde mais à veiculação de uma ideia baseada no medo — e um medo que tem sujeitos e territórios determinados — do que na busca efetiva pela resolução do problema da violência urbana no Rio.
O assassinato de Marielle é parte deste contexto e aponta para o fracasso das políticas de segurança executadas até o momento. Contudo, a grande mídia, precisamente a emissora Globo, tem transformado o assassinato desta parlamentar — que publicamente criticou a intervenção militar e denunciou a atuação dos militares na Maré — numa motivação a mais para dar respaldo a esta medida.
Quem são os atores que fomentam a violência nas periferias e favelas cariocas?
Dois dias após o assassinato de Marielle ocorreu a morte de três pessoas no complexo do Alemão, entre elas uma criança de um ano e sete meses, e duas chacinas — cinco jovens foram assassinados em Maricá e 12 na Rocinha —, ambas cometidas por policiais militares ou paramilitares (milicianos). Então, já sabemos que não há inteligência nas ações que estão sendo propostas para resolver o quadro de violência no Rio, visto que os agentes de segurança pública são os principais promotores desse mesmo quadro.
Como se dá a relação, em geral, entre as forças policiais do Estado, as milícias, os traficantes e os moradores das favelas cariocas e como essa relação resulta na perpetuação da violência?
Já existem estudos clássicos como o do professor José Cláudio Souza Alves (2003) que apontam para o papel das milícias no domínio de alguns territórios do estado Rio de Janeiro, assim como o próprio relatório da CPI das milícias instaurada pela Assembleia Legislativa do Rio em 2008, que indiciou políticos, policiais e agentes penitenciários. Portanto, o que se constata é que não há crime organizado sem a atuação do Estado. A estrutura criminosa existente hoje, seja em relação à atuação das milícias ou de traficantes, conta com a intervenção de parcelas do Estado que, através de seus agentes, conseguem ganhos políticos e institucionais na forma de organização do crime no Rio de Janeiro.
Novamente, aqueles que mais sofrem com este estado de coisas são os moradores de favelas. Identificados como parcela responsável por esta estrutura mafiosa, tendo seus territórios de vida criminalizados, são convertidos em “bode expiatório” do suposto caos que vive a cidade, muitas vezes pagando com a própria vida. E importante dizer, em sua maioria vida de pessoas negras.
O que a sua pesquisa tem demonstrado sobre como as pessoas que vivem nas periferias e favelas cariocas entendem o fenômeno da violência?
Em minha tese de doutorado intitulada “Urbanização e pacificação em Maguinhos: um olhar etnográfico sobre sociabilidade e ações de governo”, analisei duas políticas públicas executadas no complexo de favelas de Manguinhos — o Programa de Aceleração do Crescimento – PAC e as UPPs. Com este trabalho e toda vivência de mais de dez anos nesse lugar, pude compreender que nenhuma pessoa que vive em favela desconhece o fenômeno da violência de maneira acrítica. O que ocorre é que as pessoas precisam lidar com uma série de forças que estão presentes nos seus espaços de vida, e isso tem impactos sobre o alcance da sua crítica.
Entender o fenômeno da violência como a falta da garantia de direitos constitucionais, tais como saúde, educação e moradia digna, são formas de criar um discurso contra abusos policiais. Os movimentos de mães e familiares de vítimas que tiveram início nas primeiras décadas dos anos 2000 e hoje estão se espalhando para várias cidades do Brasil são um fenômeno importante, no que diz respeito à reparação judicial e moral (isto porque uma das primeiras acusações criminalizantes é tratar todo e qualquer assassinato nas favelas como morte de marginal), e para a construção de leituras mais amplas como o racismo que orienta as ações dos agentes de segurança pública.
Os moradores das periferias e favelas fazem distinção entre a violência institucional e a violência cometida pelo tráfico e pelas milícias?
Isso é feito pelos moradores, sem sombra de dúvidas. Os moradores de favelas têm os seus espaços de vida controlados e/ou invadidos por diferentes forças coercitivas responsáveis por este estado de coisas. Como já disse anteriormente, a atitude de conivência e manutenção dessa estrutura por parcelas do Estado deve ser para onde se olha quando queremos entender a dinâmica da violência urbana e da segurança pública no Rio.
Quais são as estratégias dos familiares de vítimas de violência para reagir à violência do Estado?
Os familiares de vítimas têm se organizado no nível estadual e nacional também. No Rio de Janeiro os familiares têm realizado diferentes atos públicos e de pressão a órgãos de garantia de direitos como Ministério Público e Defensoria Pública, e que tem gerado resultados positivos, em termos de andamento e investigação de assassinatos e também na criação de protocolos para garantia de direitos. Em maio deste ano acontecerá o III Encontro Nacional de Mães e Vítimas da Violência do Estado, o que é um grande esforço de articulação dos grupos de familiares que já existem.
Como avalia o processo de intervenção militar? Ele é inevitável? Qual tem sido a reação à intervenção nas favelas?
Meu posicionamento é contrário à intervenção militar. Ela se fundamenta numa suposta ausência de ordem pública, materializada num suposto aumento da violência. Até o momento, o que estamos vivenciando é o incremento de recurso em armamentos bélicos, que são usados de forma criminosa nas operações em favelas. Não bastasse a aprovação, pelo Congresso, da Lei 13.491/2017, que define a justiça militar como foro competente para tratar dos crimes cometidos por membros das forças armadas contra civis, declarações como a do comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, de que os militares possam agir com a garantia de que não surgirá uma comissão da verdade no futuro, apontam para uma postura de violação de direitos e exigência de prerrogativa de impunidade.
Diferentes grupos e coletivos de favelas, especialmente aqueles que já vivenciaram em seus locais de moradia uma intervenção do Exército, estão temerosos sobre os tipos de violação que poderão ser feitas nessa nova intervenção, que desta vez atribui plenos poderes ao comando do Exército. Nos 14 meses de intervenção das forças armadas na Maré, por exemplo, foram mais de 600 milhões gastos entre abril de 2014 e junho de 2015 — o dobro do que a prefeitura investiu em projetos sociais na região em seis anos — e um índice de aprovação baixíssimo, com relatos de agressões físicas e verbais, invasões de casa, abordagens truculentas, assédios e mortes, tal como aponta a pesquisa coordenada pela organização Redes da Maré. Não devemos esperar que uma nova atuação do Exército tenha resultados diferentes, pois mais uma vez a população que sentirá diretamente os impactos desta medida não foi convidada a manifestar sua opinião.
[1] Publicado originalmente no site do Instituto Humanitas Unisinos.
[2] Rachel Barros é doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ. Integrante do Grupo de Estudos CIDADES/UERJ e militante do Fórum Social de Manguinhos. Atualmente trabalha como educadora no programa da FASE no Rio de Janeiro.