20/04/2018 14:34

Élida Galvão¹

Vindas de diversas regiões do Pará, Amazonas, Rondônia, Roraima, Maranhão e Minas Gerais, cerca de 50 mulheres estiveram reunidas em Belém (PA) para participar de encontro que proporcionou a troca de conhecimentos, o diálogo sobre a importância do uso de Cadernetas Agroecológicas e o protagonismo delas na agricultura familiar.

Realizado pela Rede de Mulheres Empreendedoras Rurais da Amazônia (RMERA), o encontro aconteceu em março no escritório do programa da FASE na Amazônia, onde indígenas, quilombolas, agricultoras e agroextrativistas compartilharam as dificuldades enfrentadas onde moram, trocaram experiências sobre a relação com a natureza e o respeito que mantêm a biodiversidade.

Durante três dias, mulheres dialogam sobre o fortalecimento da rede que luta pelo feminismo e pela agroecologia. (Foto: Fundo Dema)

Para elas, viver a partir de uma perspectiva agroecológica vai muito além do cultivo diversificado sem o uso de agrotóxico, significa também a luta e a resistência frente às dificuldades de acesso, à ausência do Estado e das políticas públicas em seus territórios. Em muitos relatos, o avanço do agronegócio, da pecuária extensiva e a construção de usinas são a causa de muitos conflitos com as comunidades tradicionais que lutam pela garantia dos bens comuns e pelo direito de viver em seus territórios. “Na nossa comunidade, antes nós não tínhamos esse problema de dono. Agora, faz poucos dias que descobrimos que apareceu um dono. Lá é área de assentamento. Como que de uma hora pra outra chega um dono que a gente não sabe nem de onde? ”, diz indignada uma agricultora do Maranhão.

Além de muitos outros problemas enfrentados na localidade, a agricultora também relata os prejuízos causados às populações tradicionais com a implantação do sistema de energia eólica no estado. Isso porque muitas famílias são forçadas a sair dos lugares onde moram devido à instalação dos cata-ventos e a passagem do linhão de energia. “Em Rondônia, nós temos problemas com o monocultivo, com a pecuária. O agrotóxico já é jogado por via aérea. Muitos acham que a gente é doida por querer difundir a agroecologia. Além disso, antes o período de seca durava 45 dias, mas agora aumentou para 90 dias. Nas cheias tem muito alagamento e antes não tinha. Muitas pessoas que não tinham problemas com falta d’água, agora não têm nem pra beber. O governo faz uns poços artesianos, mas sem estudo, correndo o risco de ceder e desabar”, relatam as agricultoras daquele estado.

Projeto Caderneta Agroecológica

Pajé Vanda Macuxi (RR) fala sobre a caderneta agroecológica. (Foto: Fundo Dema)

A Caderneta Agroecológica é uma iniciativa do grupo ‘Mulheres Agroecologia em Rede’ e foi criada com o objetivo de auxiliar o monitoramento da produção agrícola de mulheres e visibilizar o trabalho delas no campo. O projeto, é uma iniciativa da parceria entre a RMERA, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata (CTA-ZM), a Rede de Produtoras Rurais do Nordeste, o Movimento de Mulheres Camponesas da Região Sul e o Grupo de Trabalho (GT) Gênero e Agroecologia da Região Sudeste. Todas estas redes integram o Grupo de Trabalho (GT) Mulheres da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

O acompanhamento da utilização da caderneta agroecológica por mulheres agricultoras em diversas regiões brasileiras ocorre por meio de outro projeto, intitulado ‘Os quintais das mulheres e a caderneta agroecológica na Zona da Mata de Minas Gerais e nas regiões Sudeste, Sul, Amazônia e Nordeste: sistematização da produção das mulheres rurais e um olhar para os quintais produtivos do Brasil’, fruto de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal de Viçosa (UFV), coordenada pela pesquisadora Beth Cardoso, que também integra o Mulheres Agroecologia em Rede.

Anotando a quantidade do que consomem, doam, trocam e vendem, as mulheres são acompanhadas com o auxílio da rede que atua pela agroecologia, que conta ainda com a parceria de diversas entidades e grupos para a sistematização dos dados. Na Amazônia, por exemplo, o projeto tem como apoiador o programa da FASE na Amazônia, do Movimento de Mulheres do Nordeste Paraense (MMNEPA), a Associação Agroecológica Tijupá, a Casa da Mulher do Rio, o Instituto de Mulheres Negras do Amapá (IMENA), além de federações, sindicatos e cooperativas de agricultores e agricultoras.

De acordo com Rita Teixeira, da RMERA, dos 100 quintais produtivos que inicialmente pretendia acompanhar na Amazônia, o projeto conseguiu alcançar 88, sendo 40 somente no Pará. Destes, dez são monitorados pelo MMNEPA e 30 são acompanhados pela parceria com a FASE nos municípios de Abaetetuba, Igarapé Miri, Santo Antônio do Tauá, Irituia e Mãe do Rio. “Com a sistematização das cadernetas, queremos fazer uma grande publicação e mostrar a diversidade da produção das mulheres da Amazônia, as dificuldades e os aprendizados. Queremos mostrar tudo o que as mulheres estão colocando como um avanço neste trabalho”, ressalta Rita.

Agroecologia e empoderamento

Enquanto movimento, a luta pela agroecologia também estimula o empoderamento das mulheres. Para além de cuidar de suas roças, jardins e quintais produtivos, as mulheres conquistam autonomia, tomam importantes decisões sobre suas vidas e muitas delas se tornam independentes financeira e psicologicamente de seus companheiros.

Em grupos, as agricultoras falam sobre as dificuldades e desafios enfrentados em seus territórios. (Foto: Fundo Dema)

Para algumas mulheres, estar à frente da liderança familiar juntamente com seus companheiros não significa entrar em uma disputa, ao contrário, simboliza a igualdade de acesso a um espaço que por muito tempo lhe fora ocultado, significa dar visibilidade ao importante papel que ocupam na agricultura familiar, contribuindo para a melhora das condições de vida da sociedade.

“Eu era muito caladinha, nunca tinha participado de nenhuma reunião de mulher, mas a partir do contato com a RMERA eu vim conhecer os meus direitos como agricultora. Até então eu não era agricultora. Na minha ficha da saúde eu era ‘do lar’. Quando me reconheci como agricultora, fui atrás de meus direitos. O meu lote era só no nome do meu esposo, mas no ano passado fizemos uma união estável e nós dois fomos lá no INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) pra reconhecer meu direito. Tanto que ele fala agora, ‘você está muito espertinha’”, relata Ozirene da Silva, que mora em uma comunidade localizada na PA Panelão, no município de Careiro Castanho, em Manaus (AM).

Assim como Ozirene, muitas mulheres tiveram a oportunidade de ampliar os conhecimentos sobre os seus direitos a partir do envolvimento com o projeto. Algumas delas chegaram a relatar a conquista da aposentadoria como agricultoras porque passaram a ter seus trabalhos oficialmente reconhecidos com a comprovação de suas produções.

Para Beth Cardoso, a caderneta não serve somente para pesquisar, mas também para mostrar a importância do trabalho das mulheres dentro das formações de base, dentro de suas famílias. “Em 2014, quando fizemos essa experiência na Zona da Mata, havia uma crença de que o que sustentava a agricultura familiar era o cultivo de café. Mas depois a gente percebeu que o que sustenta a agricultura familiar naquela região é a produção variada das mulheres para a autoconsumo”. De acordo com a militante feminista, a economia clássica contabilista não leva em consideração o trabalho das agricultoras como produção. Este trabalho não é valorizado porque é considerado uma extensão do trabalho doméstico. “O PIB (Produto Interno Bruto) não registra aquilo que as mulheres vendem na porta de casa. Quando se mede a renda, nunca se leva em conta o trabalho das mulheres na agricultura familiar. No entanto, quando você produz e não precisa comprar, o dinheiro não entrou no bolso, mas também não deixou de sair”, afirma Beth.

Convidada a debater a importância da agroecologia com as mulheres, Tatiana Sá, coordenadora do Núcleo Puxirum Agroecológico, da Embrapa Amazônia Oriental, ressaltou a importância do trabalho da mulher para a garantia da soberania alimentar e dos bens comuns. “É preciso avançar na intervenção das mulheres na agroecologia, valorizar o seu trabalho na agricultura familiar. Também é necessário atentar para a situação das mudanças climáticas que têm transformado a relação com o campo. Nós temos que entender como rever as secas, como enfrentar essas dificuldades. As mulheres também cumprem um papel importante na percepção de economia da água“.

[1] Matéria publicada originalmente no site do Fundo Dema.