05/03/2021 19:13
Alcindo Batista e Rosilene Miliotti¹
Alessandra Korap é uma liderança indígena da etnia Munduruku, ativista pelo meio ambiente e estudante de direito. Sua principal atuação é na defesa pela demarcação do território, denunciando a exploração de atividades ilegais do garimpo, mineração e da indústria madeireira. Ela mora no mora no Médio Tapajós, na aldeia Praia do Índio, pertencente ao território Munduruku.
A violação de direitos contra os povos indígenas foi o que a motivou a se tornar uma advogada. “Nós temos o Protocolo de Consulta do povo Munduruku, alguns ribeirinhos também têm, assim como as comunidades Montanha-Mangabal, Pimental e São Francisco e outros povos, mas não somos ouvidos. Estamos presenciando muitas empresas se instalando na nossa região, às margens do Rio Tapajós, como se não tivéssemos leis. A lei maior que temos é a Constituição e a Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Então, essas leis me motivaram a entendê-las para usá-las como ferramenta contra essas violações”, comenta.
FASE: Geralmente, a mulher é colocada no lugar do cuidado. Você poderia falar um pouco sobre essa relação da mulher indígena nesse lugar, até pelo fato da sua escolha profissional estar relacionada a cuidar da sua aldeia?
Alessandra Korap: A gente tem muito cuidado dentro do território. A nossa vida está sendo impactada. Por exemplo, eu moro numa aldeia urbana. Eu vi o crescimento da cidade que foi tirando o nosso sustento. Muitas vezes, a gente ia na beira rio pescar, assar um peixe ou passar a noite e de repente a gente não tem mais isso, porque ficou cheio de balsas e isso vai tirando o nosso direito de viver. A gente pensa muito nos nossos filhos, nos nossos netos, deles terem esse conhecimento também. O território ser demarcado é a garantia das futuras gerações. Entrei na luta achando que nós tínhamos muitos problemas, mas percebi que, no Brasil e no mundo todo, a violação contra povos indígenas é muito grande. O que divide essas nações é o Estado.
Como mulher não foi fácil estar na luta, foi um longo processo até ser reconhecida. Muita discriminação contra as mulheres. Não serve para lutar, nem para fazer reunião, mulher só serve para estar na roça, cuidar do seu marido ou dos seus filhos… Mas a gente tem que ocupar os espaços de decisão, não ultrapassando os caciques, mas conversando, tendo diálogo. A decisão não pode ser deixada apenas para os homens, até porque as mulheres nunca pensam apenas nelas, elas também pensam nos filhos, nos guerreiros, na família, na comunidade.
FASE: Como você percebe a atuação das mulheres por justiça ambiental? Na sua região tem uma questão importante envolvendo principalmente mineração. É coletivo, homens e mulheres trabalham juntos?
Alessandra Korap: É em conjunto, nada é individual. Essa questão individualista é muito dos pariuatis [não indígenas]. Eu jamais vou chegar assim: “cacique, vamos fazer isso!”. A gente vai conversando sobre o que nós temos para planejar.
Sobre a mineração, nós temos aqui a mineradora Anglo American, que está pedindo autorização para se instalar dentro do nosso território, como se, só pelo fato de o nosso território não ser demarcado, nós não tivéssemos leis. A própria FUNAI diz que só pode ser terra indígena quando é demarcada e homologada. E se ela não respeita, não tem um planejamento para retirar os invasores de dentro dos territórios demarcados, imagina nós que não temos terras registradas? Então, temos que ir para luta. Até mesmo aqueles territórios que são demarcados estão revivendo um momento de conversar para montar um planejamento e expulsar os invasores. Estamos sozinhos. O governo incentiva as invasões.
A gente espera pelo Ministério Público Federal (MPF), e muitas vezes esperamos pela FUNAI, e nada acontece. Então, o único jeito de tirarmos esses invasores é a gente indo para o mato, mesmo colocando nossas vidas em risco. Você anda no mato e pode topar com um pistoleiro, agora mais pessoas andam armadas. Hoje, tudo que era ilegal está virando lei. As armas estão apontadas para as populações indígenas, quilombolas, ribeirinhos, assentados. Não só a arma de fogo, mas também uma arma de papel, simples. A caneta sendo usada como arma para exterminar a população indígena e os povos tradicionais.
FASE: Como futura advogada, quais as barreiras que você acha que vai enfrentar?
Alessandra Korap: Aqui usamos muito as nossas próprias leis e o Protocolo de Consulta, e temos muitas barreiras impostas pelo governo. E ser uma advogada… eu nem sei, porque eu já faço esse papel. Eu acho que vai ser só para dizer que sou, porque, de certa forma, eu já exerço a função. Agora mesmo, estava lendo um documento para ser divulgado na OEA (Organização dos Estados Americanos). Só que dentro da faculdade a gente tem uma linguagem muito técnica, muito diferente, e que preciso sempre estar perguntando o que significa. De repente, a gente pensa “será que temos que falar desse jeito dentro da aldeia?”. Mas eu penso que não. O único jeito é a gente ter o conhecimento da linguagem.
Eu sei que vou enfrentar algumas barreiras, mas não vou desistir. Eu vou ser advogada do meu jeito, do meu povo. Eu vou ser uma advogada que vai ganhar muita farinha, peixe, carne (risos), mas o que mais me interessa é que eu vou ser feliz. Ser advogada é uma responsabilidade muito grande com o meu povo e eu não vou abaixar a cabeça. Enquanto o meu povo estiver dizendo “vai, segue em frente!”, eu vou seguir, mas sempre acompanhada deles, porque seguir sozinha eu não quero.
FASE: A pandemia escrachou as desigualdades sociais. Dito isso, como você avalia essa questão da violência contra povos indígenas em meio a essa crise sanitária?
Alessandra Korap: Não foi fácil quando a gente parou a faculdade por conta da pandemia. Estava tudo no início, mas já estavam tendo muitas mortes em Manaus. Trouxe meus filhos e nós ficamos isolados. Só que dentro das aldeias percebi que muitos não tinham informação, e aí eu pensei: “como que a gente vai ajudar nossos parentes?”. Alguns trabalham fora, principalmente aqui, que são duas aldeias urbanas. E a SESAI (Secretaria Especial de Saúde Indígena, por meio do DSEI- Distrito Sanitário Especial Indígena da região) tinha mandado todas as equipes para as aldeias mais distantes, a nossa ficou descoberta. Corrermos atrás de cestas básicas, equipamentos de proteção, fomos ajudar com oxigênio, fizemos materiais de comunicação, incentivamos os parentes ao isolamento, porque muitos não entendem o que é. Imagine, se na cidade já é difícil que as pessoas fiquem isoladas, imagina na aldeia? Muitos não têm o costume de lavar as mãos, de comer sozinho, sempre estamos dividindo alguma coisa.
Por vezes, as pessoas na aldeia foram contaminadas pelos invasores, madeireiros, garimpeiros. Eles não fazem isolamento. Quem quer fazer isolamento é o povo que quer o bem, mas as pessoas que querem o mal, incentivam o contágio. Talvez para nos matar logo.
Nós perdemos muitos parentes, inclusive um deles foi o Cacique Vicente Saw Munduruku. Outra grande perda para nós foi do fundador da Associação Indígena Pariri, o tio Amâncio Ikõ Munduruku. Eu chorava muito porque nós estávamos na linha de frente quando ele adoeceu e morreu. Eu ficava me perguntando “onde erramos? Por que ele não ouvia a gente?”. Aí eu dormi e acordei pensando que o erro não foi meu e nem de ninguém que estava trabalhando pelo isolamento. O erro foi do governo que incentivava as pessoas a não se cuidarem, que dizia que essa doença era só uma gripezinha e que a gente tinha que voltar a trabalhar. Que incentiva a mineração nas terras indígenas, que incentiva o desmatamento O erro não foi meu e nem dos nossos parentes. O erro foi desse governo genocida que incentiva a nos matar.
Outra forma de nos cuidar foi usando remédio caseiro², usar a natureza junto com a máscara e o álcool em gel. As mulheres, por exemplo, fizeram pomada caseira, eu tive que aprender a fazer sabão pelo Youtube para levar para as aldeias e, assim, incentivar a higiene. Agora, com o inverno (amazônico), está tendo um surto de dengue. Aí mistura a Covid-19 e a dengue.
FASE: O que você deseja para todas as mulheres neste 8 de março?
Alessandra Korap: Desejo muita resistência. Aliás, os homens têm que valorizar mais as suas mulheres. Todas as mulheres como minha mãe, minhas tias e a minha avó são exemplo, e eu também sei que sou uma mulher que inspira. Minhas sobrinhas dizem: “Tia, quando eu crescer quero ser igual a senhora para falar, sair por aí viajando”. E eu digo: “Ô, minha filha! Tem que ter muita resistência e também estar muito fortalecida”, porque sem fortalecer a sua base, não vamos a lugar nenhum.
Eu sou uma das pessoas que mais fala, mas também uma das que mais sofre ameaças. O único jeito é ter resistência, não abaixar a cabeça. Se cair, levantar. E se não conseguir levantar sozinha, existem mulheres que podem te puxar. Eu tive vários apoios, tanto de mulheres quanto do meu marido e dos meus filhos.
Eu cresci brincando com os meninos de casinha, de caçar e hoje estão tirando nosso direito de viver em coletivo, separando homem com homem e mulher com mulher, mas não era para existir isso. Aqui, nós falamos que mulheres são parte da vida, dependemos do homem e ele de nós. Então, que haja respeito.
[1] Estagiário, sob a supervisão de Claudio Nogueira, e jornalista da FASE.
[2] Remédios feitos das raízes, dos óleos dos animais, das folhas. As pomadas são passadas no peito que tem tosse e cansaço.