15/01/2019 16:16
Elisabetta Recine, Maria Emília Pacheco, Renato Maluf e Francisco Menezes¹
Em seu primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, que altera as atribuições e a estrutura dos ministérios e dos órgãos ligados à Presidência da República. A MP entrou em vigor imediatamente após sua publicação no Diário Oficial da União, mas será submetida à votação no Congresso Nacional. Por meio dela, a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan, Lei 11.346/2006) sofreu alterações profundas com a revogação de itens que tem como consequência prática a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Originalmente, na Lei, o Consea estava previsto como órgão de assessoramento à Presidência da República, com a competência institucional de apresentar proposições e exercer o controle social na formulação, execução e monitoramento das políticas de segurança alimentar e nutricional.
O Consea, assim como outros Conselhos de políticas públicas, foi fruto da redemocratização do país, tendo exercido papel determinante na promoção do direito humano à alimentação adequada. O órgão atuou durante o governo Itamar Franco em sintonia com o Movimento pela Ética na Política, que originou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, com organizações da sociedade mobilizadas para combater a fome no país, liderada pelo sociólogo Herbert de Sousa, o Betinho. Suas atividades foram interrompidas pelo governo de Fernando Henrique Cardoso e o Conselho só voltou a existir a partir de 2003.
Com a aprovação da Losan em 2006 ‒ por unanimidade de todos os partidos integrantes do Congresso Nacional ‒, o Conselho foi instituído como instância do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). O sistema tem como objetivo fundamental assegurar o direito humano à alimentação adequada a todas as pessoas que vivem em território brasileiro, nos termos do artigo 6 da Constituição Federal. Um aspecto importantíssimo sobre a Losan é que sua proposta não foi resultado da ideia de uma ou algumas pessoas, e sim resultado de um processo histórico de formulação coletiva. Consagra-se, assim, a compreensão da importância de um sistema de políticas públicas que se responsabilizasse por articular os diferentes setores e políticas para a garantia da segurança alimentar e nutricional.
O Consea constituiu-se como um espaço democrático e de concertação entre governo e sociedade, no qual dois terços dos seus membros são representantes da sociedade civil que exercem sua função de maneira voluntária, não remunerada e colocam a serviço do aprimoramento das políticas públicas suas experiências, conhecimentos e propostas. É o espaço de voz dos titulares de direito e dos movimentos e organizações dos mais variados setores sociais, para o aprimoramento das políticas públicas para a garantia da soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil.
Na sua história, o Consea, além de exercer sua função junto ao executivo na esfera federal, estabeleceu um espaço público de manifestação e diálogo com os poderes Legislativo e o Judiciário e também com as unidades da Federação, por meio dos Conseas estaduais e municipais. O Conselho dispunha de permanente interlocução com o Congresso Nacional, em especial com a Frente Parlamentar de Segurança Alimentar e Nutricional (FPSAN), sobre questões que dizem respeito ao direito humano à alimentação adequada e à soberania alimentar, como o direito à terra e território, o direito ao livre uso da biodiversidade pelos povos e comunidades tradicionais e agricultura familiar, a redução do uso de agrotóxicos e contra a flexibilização da legislação destes produtos prevista no chamado Pacote do Veneno (PL 6299/02), a defesa da rotulagem dos transgênicos e outros temas sobre saúde e nutrição da população. O Consea buscou também diálogo com o Supremo Tribunal Federal (STF), sobretudo para questões relativas aos direitos territoriais dos povos indígenas e comunidades quilombolas.
O fortalecimento das políticas de combate à fome e à miséria; a inclusão do direito à alimentação na Constituição Federal e a aprovação da Lei Orgânica, a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional; o Plano Safra da Agricultura Familiar; os Programas de Convivência com o Semiárido, como o Um Milhão de Cisternas e Uma Terra e Duas Águas; a Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Pnapo); o Guia Alimentar da População Brasileira são algumas das propostas inovadoras construídas ou apoiadas em debates no Consea que se tornaram políticas públicas para a garantia de uma alimentação saudável para toda a população.
Destacamos também o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) que realiza compras institucionais de alimentos da agricultura familiar e comunidades tradicionais para escolas, creches, asilos e outros órgãos públicos; a ampliação do atendimento e o aperfeiçoamento do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que alcançou o ensino médio, garantiu a compra de no mínimo 30% dos alimentos da agricultura familiar e comunidades tradicionais e ampliou educação alimentar e nutricional nas escolas. As políticas públicas originadas no Consea contribuíram para, em 2014, retirar o país da vergonhosa condição de constar do Mapa da Fome elaborado pela Organização das Nações Unidas (ONU). Destaque-se que em alguns destes programas o Consea participa formalmente dos processos e sua extinção cria uma insegurança jurídica para a manutenção destas ações.
O formato de participação social adotado pelo Brasil na área de segurança alimentar e nutricional tornou-se exemplo para inúmeros países. Ao longo dos anos, delegações e organismos internacionais vieram conhecer sua organização e atuação e projetos de cooperação foram implantados visando compartilhar essa experiência. O trabalho do Conselho é objeto de estudos e referências por organismos internacionais da ONU e diversos países.
O Consea corresponde à instância maior de um dos dois pilares do Sisan, a saber, o da participação social, sendo o segundo pilar encabeçado pela Câmara Interministerial de SAN (Caisan) e suas congêneres nas esferas estadual e municipal. Assim, sua extinção fere profundamente o Sisan, pois anula a contribuição deste espaço para reduzir a assimetria de poder nos processos de definição das políticas públicas. Reduz também a possibilidade de o governo federal ter acesso direto ao conjunto de necessidades, prioridades e propostas dos mais amplos setores da sociedade brasileira, principalmente aqueles em situação de maior vulnerabilidade. Com isso, aqueles que sempre definiram, segundo seus interesses particulares, continuarão imperando e interrompe-se a trajetória virtuosa da construção participativa do Sisan, gerando graves prejuízos ao processo de planejamento e implementação do Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. A desestruturação do Sisan reforça um modelo de sistema alimentar focado na monocultura, agricultura intensiva, uso de agrotóxicos e sementes transgênicas, concentração dos processos produtivos e de comercialização e oferta massiva de produtos ultraprocessados. Esse modelo gera concentração de renda e terra, contaminação e devastação ambiental e injustiças socioambientais, promove o aumento das desigualdades e conflitos no campo e também aumenta o risco de doenças causadas pelo consumo de alimentos não saudáveis.
A democratização da Administração Pública ‒ e o reconhecimento do princípio da participação social como um dos pilares do Estado Democrático de Direito ‒ representou a transição do padrão de relação verticalizada e passiva entre cidadão e Poder Público, permitindo a criação de canais institucionalizados de diálogo com a sociedade civil. Nesse sentido, acabar com o Consea representa um grave retrocesso, a negação de um espaço público plural no debate e controle social das políticas de segurança alimentar e nutricional. Mas, para além disso, a extinção do Conselho é um sinal de alerta aos espaços de participação social. A luta em defesa do Consea interessa a todos que se alinham com os princípios de uma sociedade democrática no sentido de que sejam preservados os mecanismos onde se dá, sem constrangimentos, a participação legítima e autônoma da sociedade civil. Essa participação faz valer a Constituição Federal, que prevê, entre os direitos fundamentais e instâncias do Estado brasileiro, a atuação e o controle social para o exercício pleno da cidadania.
É na mediação de interesses e de convivência com o contraditório que se realiza a verdadeira Política, que não se limita à disputa eleitoral e nem se encerra após apurados os votos de uma eleição. A sociedade civil está ativa, atuante e mobilizada. Já são muitas as manifestações de apoio no Brasil e no exterior. Na condição de ex-presidentas e ex-presidentes do Consea, conclamamos a todos aqueles que reconhecem a importância de vivermos em um país sem fome e sem todas as formas de má nutrição, onde o direito humano à alimentação adequada seja uma realidade, que participem do movimento em defesa do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea).
[1] Artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil. Elisabetta Recine foi presidenta do Consea nos anos de 2017 e 2018; Maria Emília Pacheco foi presidenta do Consea entre os anos de 2012 e 2016; Renato Maluf foi presidente do Consea entre os anos de 2007 e 2011; e Francisco Menezes foi presidente do Consea entre os anos de 2004 e 2007.