19/09/2018 14:16
Rosilene Miliotti¹
A luta pela autonomia e a independência financeira das mulheres é longa e árdua. A situação delas em relação aos trabalhos domésticos, por exemplo, não avançou. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a divisão do tempo entre o trabalho remunerado e o doméstico é a rotina de quase 93% das mulheres. Na área rural, a luta ainda é para que elas possam trabalhar e receber por isso. Muitas agricultoras trabalham na roça com seus companheiros ou a família, mas elas não tem acesso a esse recurso, que deveria ser familiar.
Fátima Aparecida Moura, coordenadora do programa da FASE no Mato Grosso, conta que alguns homens ainda têm dificuldade em “permitir” que o dinheiro e a decisão de compra fiquem nas mãos delas. “Essa relação entre as mulheres e o poder de compra já melhorou, principalmente depois de programas do governo como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Isso as fortaleceu enquanto indivíduos e grupos organizados, como associações e cooperativas, e ajudou na renda das famílias. Elas começaram a decidir sobre o que fazer com o dinheiro do trabalho delas”.
A agricultora Maria Elza B. dos Santos conta que “antes a mulher não podia sair de casa. Era só serviço em casa e na roça”. Mãe de sete filhos, avó de 12 netos e bisavó de uma menina, trabalhava na roça, fazia comida, cuidava de casa, das crianças e lavava roupa todos os dias. A primeira coisa que comprou com o dinheiro do seu trabalho foi uma máquina de lavar roupa. “Eu passei mais de 40 anos lavando roupa na mão todos os dias. Pense nesse monte de filho e eu tendo que lavar todas as roupas na mão? Foi meu grito de independência quando consegui comprar a máquina”, se diverte.
Integrante da Associação Regional de Produtoras Agroextrativistas do Pantanal (Arpep), Elza, junto com suas companheiras, produz biscoitos, pães, bolachas, licor e bombom com o cumbaru². “Foi muito bom ter meu próprio dinheiro. Com a chegada dessas ações e o incentivo das meninas da FASE, nós começamos a trabalhar. Todo mês tínhamos o nosso dinheirinho na mão. Me senti vitoriosa quando comecei a decidir o que fazer com o que recebia. É muito ruim você querer uma coisa e ter que ficar esperando pelo dinheiro do marido”, ressalta.
Apesar da diminuição de recursos do PAA, a Arpep tem levado seus produtos para as feiras. “Estamos vendendo bem e o povo já acostumou. Fico feliz quando eles indicam, falam sobre as propriedades do cumbaru, isso fortalece o nosso trabalho”, comemora a agricultora.
Apoio deles
Elza conta que quando começou a frequentar as reuniões para organizar a associação, seu companheiro dizia que não ia dar certo. Mas ela queria tentar. “Gosto de trabalhar na cozinha. Não é só pelo dinheiro, mas pelas amizades, as conversas. Lá, uma ajuda a outra”, explica.
Antônio Costa dos Santos, mais conhecido como Quebrado, é o companheiro de Elza e diz que o trabalho dela ajuda na renda da família. “Uma coisa que eu estou achando muito bom é conhecer outros lugares, outras pessoas. Eu mesmo já fui a Minas Gerais e a acompanho quando posso, mas ela viaja e vai aos encontros sozinha. Eu tenho pavor de viajar de avião e ela é mais corajosa”, brinca. “Os homens têm que largar a mão de ser machistas e egoístas. Eles têm que apoiar as esposas porque é a família que ganha. A mulher tem que ser tratada como companheira e eu tiro o chapéu para ela”, conclui.
“Já fui a vários encontros de agroecologia e percebi que a maior parte dos participantes é de mulheres, mas é bom quando o marido acompanha. Eu já o levei a Montes Claros (MG) e também para o IV Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), em Belo Horizonte. A primeira vez que viajei de avião foi para Campo Grande (MS) e eu gostei, foi muito melhor do que de ônibus. Já fui a Brasília, andei de escada rolante e entrei em um shopping”, lembra Elza.
Para Fátima, essa “aceitação” e o apoio dos companheiros das agricultoras é fruto de um longo trabalho feito nas comunidades. “Os homens começaram a entender um pouco mais sobre a participação das mulheres, que os eventos que elas participam são momentos de capacitação e de pensar em projetos de geração de renda. Agora, são elas que estão levando os seus companheiros aos eventos”, afirma a coordenadora do programa da FASE no Mato Grosso.
Violência doméstica no campo
As mulheres sofrem diariamente com a violência psicológica e física nas cidades, no campo e nas florestas. Mas, a violência contra as mulheres de áreas rurais é silenciosa, ninguém vê ou ouve. Há 10 anos, a Organização Mundial de Saúde (OMS) apontou que mais de um terço das brasileiras que estão nessas áreas são vítimas de agressão por parte de seus cônjuges, mas o número pode ser maior.
“‘Você não precisa trabalhar’, ‘Nós vivemos sem esse dinheiro’, ‘Pra que você quer dinheiro, te dou tudo’. Boa parte de nossas companheiras ouvem isso quando começam a querer trabalhar fora da roça, fora de casa. Eles não veem sentido no trabalho, mas o homem tem que incentivar. Tem muito homem machista que só quer a mulher dentro de casa”, reclama Elza.
Em suas orações, a agricultora diz que sempre pediu a Deus para ter um marido que não maltratasse dela ou de seus filhos. “Eu já vi e ainda vejo muita mulher sendo maltratada pelo marido. Já vi mulher apanhar ainda durante o resguardo, com o filho pequeno nos braços. Tive uma vizinha que nós ouvíamos os gritos dela e das suas crianças ao longe. Uma vez essa mulher tentou fugir de casa pegando carona na BR, mas não conseguiu e o marido bateu muito nela. Me mudei, mas até hoje eu penso nela. Sempre rezei pedindo que se fosse para eu viver sofrendo com marido, preferia sair no caixão”, conclui.
[1] Jornalista da FASE.
[2] Fruto nativo do Cerrado.